Meu pai tinha uma fazenda. Eu tive uma fazenda na minha infância.
Longe de ser um grande latifúndio, mas suficiente para ele criar
alguns bois e algumas vaquinhas que davam leite.
Meu pai tinha pavor de tomar leite direto da teta da vaca.
Medo de brucelose e outras doenças que as vacas podem transmitir.
Meu pai também tinha horror a salsicha. Conhecia como se
fabricavam as salsichas.
A fazenda do meu pai ficava a uma hora de carro, uma Rural Willis,
de onde morávamos, o que me permitia sábado sim, sábado não, me
vestir de Tom Mix, prender a estrela de xerife na camisa quadriculada,
calçar botas com esporas de mentirinha e madrugar para montar o Batuta,
um cavalinho que meu pai comprou na Quinta da Boa Vista e me deu de
presente de aniversário de cinco anos.
Um dia, eu vesti na cintura uma cartucheira com um revólver de cano
comprido e prateado da Manufatura de Brinquedos Estrela. Meu pai
perguntou se eu ia matar os bois dele. Nunca mais vesti a cartucheira.
Os sábados na fazenda tinham um ritual. A gente chegava na casa principal,
as montarias estavam prontas e partia a tropa de curral em curral
para reunir a boiada do pasto, fazer contagem, aplicar remédios nos animais,
reabastecer os cochos de sal grosso e verificar se tudo estava direitinho.
Meu pai ia na frente, montando a égua Pratinha, ao lado de Seu Amado,
o homem que cuidava da fazenda e dizia que eu era um menino muito amisaroso.
Nunca entendi o adjetivo, mas, pelo jeito sorridente de pouco dente que ele
dizia, achava que era coisa boa.
Atrás das duas montarias, seguia eu trotando o Batuta. E atrás de mim,
Aguilar, o filho do seu Amado, tocava a pé um carro de boi carregado
de tralhas: apetrechos, ferramentas, sal grosso, remédios, galões de leite,
marmitas embrulhadas em pano de prato. Minha avó era quem preparava a minha
marmita: arroz, caldo de feijão, carne moída com azeitona, purê de batata e
um ovo frito em cima de tudo.
Havia também várias capas de encerado de caminhão, caso chovesse.
A gente esquentava as marmitas no fogão de lenha da casa de sapê de Dona
Iracema e Ico, o cara que cuidava do curral do Pau D’Alho, cujo nome minha
mãe não gostava que eu dissesse porque lembrava um nome feio.
Tempos depois entendi a rima.
Puxando o carro de boi, Pelé e Coutinho. Dois parelhos muito fortes e bonitos.
Caminhavam na velocidade da placidez bovina e tinham um jeito que me encantava.
Os passos eram simultâneos, os movimentos iguais. Quando um virava a cabeça
para esquerda ou para direita o outro também virava para o mesmo lado,
e vice e versa, numa harmonia que parecia que tinham ensaiado. Os dois se
entendiam de olhos fechados e me hipnotizavam como mágicos.
Uma tarde, num sábado sem fazenda, meu pai me levou ao Maracanã, para assistir
ao meu Botafogo jogar contra um time sensação vindo de uma cidade de praia
em São Paulo. Era uma cidade que tinha praia de areia dura, onde carros trafegavam
até a beirinha das ondas mansas, meu avô me mostrou na televisão.
O jogo no Maracanã foi um baile do time branco da praia paulista em cima do meu
Botafogo, comandado por uma dupla de homens fortes, bonitos e harmônicos chamados
Pelé e Coutinho.
Aí, eu entendi o nome dos bois.
Não eram plácidos e vagarosos como os da fazenda, mas ágeis e velozes como Corisco,
o cavalo que Seu Amado montava.
E também se entendiam de olhos fechados. E se movimentavam como ensaiados.
E me hipnotizavam como mágicos.
Outro dia, soube que Coutinho havia morrido. Não o boi, mas o parelho de Pelé,
do baile espetacular que vi no Maracanã.
Na mesma hora, um carro de boi encantado passou lentamente pela estrada da
minha memória, carregado de uma tralha imensa de lembranças felizes.
1 comentários:
Bacana, Zé. Eu, modéstia a parte, tive Cuieiras como fazenda.
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