No
tempo de D. Dinis, todos os mouros ligados ao controlo militar e
administrativo do território tinham já sido expulsos das terras do
Algarve. Mantinham-se, no entanto, as populações há muito
arabizadas e mais ligadas ao solo e ao mar da região do que às
elites do califado.
Ali
Agat, por esses tempos apanhador de medronho na serra de Estoi, que
depois vendia nas povoações ribeirinhas, andava certo dia
embrenhado na mata arbustiva, atarefado a apanhar os frutos maduros e
a encher com eles uma cesta de vime. Os demasiado maduros e os já
bicados pelos pássaros iam-lhe enganando a fome. Quando o calor
apertou, recolheu-se a uma sombra cerrada e foi roendo o pão de grão
de bico que tinha trazido de casa. Depois, deitou-se a dormir debaixo
de uma alfarrobeira de copa densa. Quando acordou, manteve-se ainda
um pouco de costas no chão forrado de folhagem, a saborear o fresco,
de olhar perdido no interior da copa da árvore, atravessada aqui e
ali pelos raios de sol de princípio da tarde.
Viu,
então, uma alfarroba de brilhos dourados e maior do que as outras.
Apanhou-a e logo suspeitou, pelo peso e pelo brilho, que devia ser de
ouro. Foi tomado de enorme orgulho e alegria. Possuir uma alfarroba de ouro era algo que nunca se atrevera a desejar. Sentiu-lhe o peso, admirou-lhe os reflexos, a curvatura elegante. Durante um bocado, brincou com ela como uma criança que encontrou um brinquedo novo. Quando ficou satisfeito, meteu-a no bolso da jelaba e apressou-se a voltar para casa,
para a mostrar à mulher. Andou, andou toda a tarde, mas a sua aldeia
ficava longe e a alfarroba cada vez lhe pesava mais no bolso. A certa
altura, sem poder mais, resolveu arrecadá-la na loca de uma árvore.
Viria buscá-la depois. Pôs-se à procura de uma apropriada e foi
então que uma cabra que por ali andava a pastar o interpelou:
— Dá-me
essa alfarroba, Ali Agat! É do meu pai; essa e muitas outras
alfarrobas de ouro que deixou à minha guarda, quando teve de fugir
para Granada.
Perante
a atitude surpreendida dele, a cabra explicou-se:
— Eu
sou uma princesa moura, filha do emir de Al-Ulya. Como teve de fugir
à pressa, quando o rei cristão entrou na nossa cidade, lançou-me
um encanto, para eu ficar sempre de guarda aos seus tesouros.
— Como
sei que não me estás a mentir? — respondeu Ali Agat, desconfiado.
— Vem
comigo e verás! — disse a cabra, chamando-o para uma vereda
estreita.
Ali
Agat seguiu a cabra por muito tempo. Depois de serpentearem pela
vereda da serra, chegaram à noitinha à entrada de uma gruta, meio
escondida por baixo de um grande arbusto.
— Baixa
a cabeça e entra! — comandou ela, mas Ali Agat não queria entrar
na gruta da cabra, sem saber o que viria depois. — Lá dentro vais
descobrir tesouros como nunca conheceste — insistiu ela.
Ainda
desconfiado, o algarvio acabou por entrar. A gruta era espaçosa e
profunda e o chão estava ladrilhado de alfarrobas de ouro.
— Uma
por cada súbdito do meu pai — esclareceu a cabra —, mas ele
fugiu há tanto tempo que já não deve vir buscar-me, nem livrar-me
deste encanto. Só tu podes salvar-me. Basta dares-me um beijo.
Quando mo deres, quebra-se o encanto e eu volto a ser a jovem
princesa que era. Para isso, estou disposta a dar-te todo este ouro.
Mas, com uma condição: tens de retirá-lo da gruta antes do nascer
da lua.
Ali
Agat, muito relutante, mas pensando como ficaria imensamente rico só
por beijar uma cabra, acabou por aceitar. Apenas lhe deu um beijo na
boca, ela transformou-se numa linda jovem, de belos cabelos negros e
vestida com uma longa e leve jelaba verde-água. Ali Agat ficou
encantado com a beleza da princesa, mas precisava apressar-se a
recolher o ouro. Boa parte da noite entrou e saiu da gruta,
carregando pesadas alfarrobas de ouro. Finalmente, quando já cansado
arrastava a última alfarroba para fora da gruta e rejubilava com o êxito,
aconteceu o que temia: o grande halo prateado da lua já se erguia
majestoso no céu escuro. Imediatamente, todo o ouro desapareceu,
suspeitando ele que tivesse voltado para a gruta, cuja entrada se
fechou com estrondo. E a linda princesa voltou a ser a cabra de
antes.
— Vê
o que fizeste! — ralhou ela. — Com os teus vagares dobraste-me o
encanto.
Ali
Agat não sabia o que dizer, mas acabou por se desculpar com o
cansaço. Disse-lhe que se esforçara tanto que até se esquecera da
mulher, que já devia estar preocupada à espera dele. A cabra
compreendeu:
— Volta
lá para a tua mulher, já que, a mim, só me fizeste mais infeliz.
Mas sempre pelo mesmo caminho e sem olhar para trás. E leva estes
dois saquinhos de figos para a viagem.
Ali
Agat voltou pela mesma vereda, recolheu a cesta de medronhos e
dirigiu-se para casa. Quando sentiu fome, tentou comer os figos que a
cabra lhe dera, mas ainda estavam verdes e leitosos e já lhe tinham
posto os bolsos a colar. Chegou finalmente a casa, onde a mulher já
estava muito aflita, sem saber onde o procurar. Contou-lhe então
tudo o que lhe tinha acontecido e porque se tinha atrasado:
— Quando
acordei da sesta, apanhei uma alfarroba de ouro mas, quando vinha mostrar-ta,
encontrei uma cabra, que, na verdade, é uma princesa moura
encantada e que tem uma gruta maravilhosa ladrilhada a ouro. Disse
que seria todo meu se eu lhe desse um beijo e o tirasse da gruta antes
de a lua nascer. Não consegui tirá-lo a tempo, porque entretanto apareceu a lua. Mas
trouxe esta cesta de medronhos e estes dois saquinhos de figos. Só
que ainda estão verdes.
— Ai,
Ali Agat, nem mentir sabes! — queixou-se a mulher. — Apanhaste
outra vez uma barrigada de medronhos e ficaste a ver mouras
encantadas e alfarrobas de ouro. Porque é que não deixas o medronho
e voltas para a amêijoa?
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Joana Vasconcelos, Lilaea (secção),
2017.
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8 comentários:
Bonito. Gostei.
Obrigado!
Muito bom, como nos antigos contos que nos faziam sonhar. Vai para dois anos apanhei uma barrigada de medronhos e andei quase um mês com dor de barriga, estive para ir ao médico. O Ali Agat, teve mais sorte do que eu!!!!!!
Obrigado! O Ali Agat, se calhar, apanhou uma bebedeira de medronhos. Ou não?
que saudades! que maladade não te ler mais! este etu humor verrinoso é impagável a desmporpnar um texto quase pintado de tão escoreito e colorido "Porque é que não deixas o medronho e voltas para a amêijoa?" maravilha!!! Abraço. Se um dia vieres cá por baixo, dá sinal de vida.
O teu apreço é um bom indicador. Percebo que encontraste verrina onde só deixei bucolismo e encantamento. Alegadamente. O meu apreço por isso!
Mais uma história, que por um lado me obriga a ler depressa ,sempre a imaginar como é que irá acabar mas por outro gosto de ir lendo com todo o vagar, absorvendo (e também vivendo) todos os pormenores da aventura do Ali Agat - que é algarvio como eu .A propósito, também gosto de ir provando medronhos sempre que os encontro em bom estado de maturação num ou noutro passeio pela serra ...
Muito me apraz a sofreguidão, mas também a fruição atenta do meu texto. Não sei se desejo que também encontres mouras encantadas nesses passeios pela serra, porque ali há gato!
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