Sou um piano afetivo. Minha memória sensorial retém tanto
melodias doces e arpejos esfuziantes quanto desempenhos trôpegos e experiências
acidentadas. Conheço bem a minha senhora e sou fiel a ela. Gosto quando suas
mãos passarinham sobre o meu teclado, quando ela se atreve a exaurir minhas
cordas num exercício de mil ritornelos. Não faço música sozinho. Só emito sons
quando bolinado. Posso ir do pp ao FF dentro dum mesmo compasso, manter a
pulsação ou vacilar no tempo, mas sempre conforme as oscilações que ela imprime
à vida dela, à minha vida, à nossa.
Aprendi a amar essa criatura que geralmente não me dá a
atenção que mereço, mas que de repente aparece para me descobrir e estimular
sorrisos em meus incisivos de marfim. Somos unidos desde qualquer antes e para
qualquer sempre. Sou-lhe instrumento, sim, mas tenho também o meu poder como
piano de estimação: é diante de mim que amiúde ela se prostra.
Estamos juntos há um tempo considerável. Ela ainda era
menina de 13 para 14 anos quando me plantaram na sala do sobrado. Fui um
presente dado pelo pai e pela mãe dela, adquirido num período instável, de
turbulências financeiras. Oferenda singular e extravagante. Ela se surpreendeu
quando me viu lá no canto, madeira lustrosa, porte imponente de Fritz Dobbert,
todinho pra ela, todinho dela. “E agora? Vou ter de estudar de verdade?” —
pensou. “Que lindo. Será que eu mereço?” — disse.
De lá pra cá, ela já deu uma boa melhorada na técnica e
interpretação, mas nunca chegou ao virtuosismo que almejei. Vez ou outra
consegue tirar um som bonito num estudo de Chopin, mas logo engasga na escala
descendente da mão esquerda. Não venceu a dificuldade das oitavas nem dos
acordes cheios. Mistura o canto com o acompanhamento. A postura das mãos ainda
não é favorável. Titubeia na dinâmica e nunca chega ao andamento exigido. Apresenta
músicas com sujeirinhas que não se limpam. E o pior: não faz nada de ouvido,
não compõe nada, não reproduz nem MPB, toca sempre apoiada na bengala da
partitura. Tem até um bom repertório, mas com capacidade de memorização nula,
coitada.
Há pianos que formam estrelas. (Vocês devem ter visto o
vídeo do Elton John e seu primeiro piano — https://www.youtube.com/watch….
Emocionante.) Eu não. Sou piano modesto, de pianista meia-boca. Teimosa e
apaixonada, no entanto medíocre. Mas já me conformei. Eu simplesmente obedeço,
reagindo com sons de zelo e cumplicidade. Um piano escravo, feito justamente
para a pianista a quem fui consagrado.
Sou um piano de querenças e sempre me emociono junto com
ela. Aceito as condições dessa mulher que me toca e que hoje faz 45 anos. Ela
me leva aonde vai. Meu destino é ir com ela, estar com ela. Já passei por
quatro mudanças e, ao longo do tempo, sofri avarias físicas e mesmo
psicológicas. Um piano também envelhece, sabe? E se reconhece menos atlético e
mais sujeito ao adoecimento. A afinação não está durando muito. O clima de
Brasília me faz cada vez menos bem. Estou precisando de um novo jogo de
cravelhas e conserto nos pedais. A cachorrinha nova, xodó da casa, agora deu de
querer roer meus pés.
Também lamento alguns deslizes dela. Não a vi de noiva, por
exemplo. Eu sonhava com o buquê sobre a minha caixa, e ela tocando a Marcha
Nupcial com o vestido branco e chapéu charmosinho. Acho que o noivo também
queria isso. Mas ela nos decepcionou.
Quando ela largou a solteirice, tive de acompanhá-la pro
novo lar. Soube que os pais dela se queixaram do silêncio causado pela minha
falta. Meu lugar ficou intocável por muito tempo, curtindo o vazio da ausência,
até eles se acostumarem.
Conheço demais essa mulher. Para cada situação, ela vem com
um toque diferente. Toda alegria e toda dor interferem na música dela e nos
transformam. Acompanhei suas primeiras desventuras amorosas, os estudos
pré-apresentações, as conquistas acadêmicas e profissionais, tive saudade
quando viajou e demorou a voltar, percebi sua expressão pungente nos momentos
de doenças e mortes na família, acompanhei sua mudança hormonal durante cada
gravidez e cheguei a sentir as primeiras contrações uterinas. Ela adorava tocar
de barrigão quase explodindo. Admirei quando, por tanto tempo, ela se fez
alimento para as filhas. Também estive solidário quando dos sangramentos
indesejados, entre outros desmanches de sonhos. Estive pertinho dela quando do
câncer de tireoide e quando dos exames mais chatos. Estarei presente também na
menopausa e na aposentadoria dela. (Quem sabe neste período sobre mais tempo
para ela estudar?)
Respeito seu silêncio quando me evita, mas sempre torcendo
para que volte logo a percorrer meu teclado alvinegro. Vejo sua felicidade
quando ensaia e toca com as filhas, quando faz dueto com o irmão, quando
improvisa um louvor a Deus, quando arrisca uma canção declaração de amor para o
marido, quando interpreta Chiquinha Gonzaga, quando reúne os amigos para um
sarau (e treme sempre, receosa de errar toda nota). Sei quando ama uma música e
quando odeia uma música. Sei quando está me tocando por prazer e quando está
repetindo um exercício de técnica por obrigação. Nunca será uma instrumentista
profissional, mas, que maravilha, é amadora!
De vez em quando ela lê em voz alta os poemas e crônicas que
escreve para mim. Apareço como personagem importante na seleta dela. Desta vez,
o autor do texto homenagem sou eu. A convivência com ela me tornou este piano
metido a escritor. E toda palavra aqui é feito abraço, é feito canção, é feito
parabém.
Enquanto essa mulher madurece, vamos juntos e felizes, nos
sensibilizando mutuamente. Enquanto ela se curva aos meus encantos, a música da
vida vale a pena.
Piano da Maria Amélia Elói
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