Com
o passar do tempo, perdemos a localização temporal exata de certo
facto. Desta personagem, lembro-me que apareceu de súbito a dormir por baixo das
arcadas do meu prédio, mas perdi a memória sobre a estação do ano
em que tal aconteceu. É provável que fosse outono.
A
princípio, todos pensámos que ficaria por ali umas noites e
partiria, tanto mais que não acumulava muitos cobertores e
agasalhos, como outros sem-abrigo. Limitava-se a deitar-se sobre um
cartão grande, daqueles que acondicionam eletrodomésticos, para se
proteger minimamente do frio do mármore. Às vezes, acrescentava um
cobertor. De dia, desaparecia durante a maior parte do tempo, talvez
por se envergonhar da maior exposição a que se sujeitaria. Era
alto, um pouco curvado, barba e cabelo grandes, olhos encovados
sempre baixos, vestia um eterno sobretudo e parecia ter mais de
cinquenta anos, mas nestas situações de fragilidade social é um
pouco difícil fazer uma avaliação etária rigorosa.
Nunca
soubemos de onde viera, porque estava ali, porque dormia na rua.
Habituámo-nos à sua presença e quase nos passava despercebido. O
incómodo inicial por ter ali um sem-abrigo desvaneceu-se aos poucos,
porque o homem não sujava, não pedia dinheiro, não pedia comida,
não dizia nada —
literalmente. Nas várias tentativas que os vizinhos mais piedosos
fizeram, perguntando-lhe se tinha família, se precisava de alguma
coisa, obtiveram sempre a mesma reação. Ele virava a cara, mudo, e
chegava a afastar-se do local, sem ares de rudeza. Mas não recusava
o que lhe trouxessem. Várias vizinhas lhe levavam comida, de vez em
quando. A mais admirável era a velhota indiana que trazia do
minimercado um saquinho de plástico já com víveres separados e que
entregava ao homem. Ele recebia, fazia um gesto de agradecimento com
a cabeça e recolhia-se.
Certa
vez, tendo eu achado
uma chave junto à porta, achei que tinha um bom pretexto para
interagir com ele e, eventualmente, pô-lo a falar. Abordei-o e
pedi-lhe que a desse a quem a tivesse perdido. Aceitou. Um
ou dois dias depois,
apontou-me umas palavras a lápis no mármore, informando que a chave
era da mulher da limpeza, escritas com uma excelente caligrafia.
Fiquei a suspeitar que o homem tinha a sua instrução e já teria
tido uma vida bem mais confortável.
Esta
recusa em comunicar foi talvez um obstáculo a que alguém
conseguisse aliviar-lhe o
mal-viver. A sua atitude
asceta dava a impressão de querer castigar-se, sabe-se lá por quê.
Lembro-me de muitas noites, de vários invernos, em que eu, chegando
do trabalho pelas duas ou três da madrugada, o via a dobrar-se em
cima do cartão, talvez com fome, talvez com dores de alguma mazela
que se desconhecia. Algumas vezes acreditámos que um dia
acordaríamos com a notícia de que fora encontrado morto na sua cama
de cartão.
Certo
dia de folga,
resolvi seguir-lhe o deambular diurno, para saber por onde gastava o
tempo. Levantei-me com o raiar do dia, mas quase se me escapava. Com
a sua carga de sacos às costas, foi percorrendo o caminho para
Loures, através da Quinta Nova. Ali, sentou-se uma boa hora à
sombra de uma figueira, mastigando algo indefinível. Perto do
meio-dia, atravessou para o Olival e, numa rua interior, aproximou-se
da porta de uma tasca e esperou. Pouco depois, um homem saiu e
entregou-lhe um pequeno embrulho, que ele guardou no bolso direito do
sobretudo. Sem dizer nada, como sempre, acenou com a cabeça e
afastou-se em direção ao Vale do Forno. Um pouco antes, subiu uma vereda na encosta,
até uma antiga fonte, com vista sobre o vale de Odivelas.
Nesta parte, foi difícil segui-lo sem me expor, apesar de estar
disfarçado com um boné e uns óculos escuros. Dei uma volta larga e
aproximei-me do local numa
posição sobranceira. Libertara-se da carga de sacos e estava
sentado num banco de pedra, a olhar o vale. Tirou o embrulho do bolso
e começou a comer, pausadamente, como quem não tem apetite. Devia
ser uma sandes qualquer que o taberneiro lhe dera. Eu próprio já
sentia o estômago a reclamar, pelo que desci o monte e comi uma
sandes de ovo e chouriço, numa cervejaria, mas voltei rapidamente ao
meu posto, com medo de lhe perder o rasto.
Não
havia pressa. O almoço tinha acabado, mas não a digestão. O meu
vizinho circunstancial estendera-se ao comprido no banco de pedra e
parecia dormir a sono solto. Nada mais me restava que esperar. Ou
ir-me embora. Resolvi ficar. Durante umas duas horas, entretive-me,
eu próprio, a contemplar o vale, com a ribeira e as pequenas hortas
clandestinas, rodeadas por prédios a perder de vista. Sem dúvida,
era uma vista esplêndida. Era de estranhar que os prédios ainda não
tivessem invadido as hortas.
Feita
a sesta e reposta a carga, o meu vizinho — como seria o nome dele?
É incrível como nos interessamos tão pouco pelos outros —
atravessou novamente a ribeira e dali subiu o Bairro dos Pombais.
Sentou-se num ponto estratégico, um pouco encoberto com umas
árvores, e ficou-se a espreitar longamente algo lá longe, do outro
lado do riacho. Passado um bocado, percebi que se agitava com o que
estaria a ver. Lá em baixo, nada de especial acontecia: a mesma fila
de casinhotos toscos, com arremedos de quintal nas traseiras, em que
alguns tinham improvisado galinheiros e outros procuravam ganhar
terreno à ribeira para fazer horta. Ao voltar os binóculos para o
meu vizinho, para apurar a direção em que olhava, fui surpreendido
pelas lágrimas que lhe rolavam macias pelo rosto barbado. Quase
saltei de curiosidade. O que havia lá em baixo que lhe provocava
esta comoção? Concentrando a atenção, julguei descobrir a causa
de tanta emoção: duas crianças de uns quatro ou cinco anos
brincavam despreocupadas num dos quintalecos, correndo atrás de uma
galinha.
Estava
descoberta uma ponta do segredo do vizinho. Apostaria que havia ali
família dele. Seriam as crianças seus filhos? Ou netos? Ou, tão
só, sobrinhos? Alguma ligação profunda existia entre o estranho
vizinho e aquelas crianças. E, claro, as crianças teriam pais ou
avós dentro de casa. Ou que chegariam mais tarde. Porque não se
aproximava mais era, certamente, a chave do enigma.
Meditando
sobre o assunto e congeminando das mais simples às mais abstrusas
hipóteses, segui-o o resto do dia, só para cumprimento do plano
decidido. Regressou placidamente às arcadas do meu prédio. E eu a
casa, embrenhado nos mais piedosos pensamentos e imbuído das mais
caritativas intenções.
No
silêncio da noite, sentindo a presença dorida do pobre diabo
deitado lá fora num chão rijo, decidi-me a procurar soluções
junto da autarquia, assim que amanhecesse. Mas de manhã estava frio,
eu tinha dormido pouco e tinha sono. Nem sabia muito bem aonde me
devia dirigir. De tarde fui trabalhar e adiei a diligência. Mais
dias passaram, há muitas coisas para fazer, as anteriores
preocupações são substituídas por outras mais frescas e tudo
passa.
Aparentemente,
terá havido pessoas e entidades que quiseram tirá-lo dali, mas ele
sempre recusou. Uma vez, já no fim dos cinco anos que ali passou, vi
uma mulher, acompanhada de uma assistente social da autarquia, a tentar
convencê-lo a ir com elas. Sem êxito. No entanto, talvez um mês
depois, aceitou relutantemente sair dali com a tal mulher. Correu o
boato de que era filha. Que dramas escondia ele, que misérias
estavam por detrás daquela situação, nunca o soubemos.
Ou nem quisemos saber.
Joaquim
Bispo
*
Esta
crónica narrativa
foi classificada em 45º
lugar, em 134 candidatas, com
a pontuação
de 75%, no Concurso
Literário Prêmio Flor do
Ipê —
Antologia 2017, da
Universidade Federal de Goiás, Brasil.
*
Imagem:
Dominguez
Alvarez, Louco,
1934.
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2 comentários:
Gostei bastante de ler a sua crónica, verdadeira ou fantasiosa. Nem sempre as leio todas, apenas por falta de tempo. Vejo que participa muito em concursos brasileiros, em que é sempre bem classificado. Em Goiânia conheço um grande escritor, de quem sou amiga: Miguel Jorge.
Fico contente por gostar do que escrevo.
O Brasil providencia inúmeros concursos literários, muitas vezes de contos de tamanhos aceitáveis. Felizmente, já por trinta vezes gostaram do que enviei…
Acabei de pesquisar pelo nome desse escritor e encontrei-o no Youtube. Não conhecia.
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