(trecho de um dos capítulos de O Jardim dos Anjos, romance deste mesmo autor)
As retinas da pequena Marie D´Amboise
não tinham dimensão do que estavam captando. À sua frente um mar azul se
acarpetava, no estreito entre duas fortalezas com canhões que espiavam de suas
janelinhas os que chegavam e os que saiam, ora cuspindo fogo aos malvindos, ora
celebrando a paz em silêncio. Nem enxergou como deveria enxergar o mar que se
se abria a um contorno de montanhas cobertas de florestas e algumas pedras
infinitamente pontudas, postas sobre um filete nem branco nem bege, mas cor de
areia, coisas que a menina desconhecia. Atentou para os salamaleques de boas
vindas de um cardume de botos, sorriu, apontando seus bracinhos para eles como
que quisesse acaricia-los.
Desapercebeu-se que à sua esquerda, uma escultura imensa de granito
paleozoico surgia de dentro do mar em direção ao céu, quando interjeições
maravilhadas soaram ao seu redor
– Que
belle, que belle, que belle.
O vapor seguiu lentamente espumando as
águas comboiado pelo cardume saltitante e Marie desviou sua atenção para uma
montanha pontuda à sua esquerda, um tanto longe do convés, bem atrás de um
filete de areia, algumas pequenas casas e uma densa floresta tropical, mas
suficiente para que ela apontasse para o tal topo distante e cutucasse a mãe:
- Mama,
je regarde Jesus.
A mãe carola arrepiou-se e fez o Sinal
da Cruz. A menina não via o que via, mas via o que imaginava. Décadas depois,
uma imensa estátua de Cristo de braços abertos foi colocada naquele cume.
Nenhuma novidade para a menina que
sempre vislumbrava Deus em tudo de bonito, generoso e exuberante que a Natureza
lhe apresentava. Conheceu assim à
primeira vista e aos seus 3 anos e 8 meses de idade, sentada no colo da
beatíssima mãe Chloé de Chandizont, o que depois lhe contariam que se chamava
Riô de Janeirrô, cidade emergente, exótica, calorosa e promissora, para onde a
euforia inovadora e aventureira da Belle Époque empurrava vapores e grandes
veleiros.
A bordo de um deles, embarcara a
pequena família Chandizont, cujo patriarca, o Professeur Docteur Pascal Pierre
Chandizont, jovem cientista e curioso pelos trópicos, resolveu deixar o Vale do
Loire para conhecer a fundo e cuidar de mazelas típicas de paragens quentes e
úmidas da América do Sul. Riô de Janeirrô não poderia ser melhor destino: ali
mesmo, em pleno 1900, nasciam o Instituto Soroterápico Federal de Manguinhos - perfeito para Pascal se sentir em
casa – e residências em estilo francês num bairro próximo, igualmente perfeitas
para um novo lar dos Chandizont.
Sem confrontar com o pensamento cientifico do marido, que jamais
desassociava a fé cristã dos caminhos da ciência, Chloé sentia-se uma freira
sem nunca ter sido. Sua devoção a Deus era tamanha que foi abençoada com uma
filha que nascera com a vocação das missões divinas. A menina cresceu na paz de
Cristo e com um calor desgraçado. Suava e abanava-se pelas ruas, ainda com seus
leques e vestidos franceses, mas sem grandes estranhezas com o novo cenário que
a acolhia.
Mas as retinas de Marie D´Amboise, como sempre, não tinham dimensão do que
estavam captando. Via o que queria ver, não enxergava o que
estava para ver. Desapercebeu-se que um fim de tarde chuvoso e encalorado,
lágrimas manchavam a gravata de seda do pai, enquanto os dois assistiam Chloé
arder em febre e prostração sobre a cama. Se o destino lhe acenou com
felicidade ao cruzar a entrada da Baía de Guanabara, o mesmo destino lhe sorria
irônico, quando a peste bubônica entrara com ratos sem pedir licença na sua
casa de estilo francês e se instalou nas entranhas de Chloé. Logo a peste
bubônica, que por tantas noites de estudo e experiência sorvera as energias de
Pascal. Logo a peste bubônica, que levou o Governo a caçar ratos e pagar por eles
– e descobriu mais tarde que muitos criavam o roedor transmissor para trocá-los
por dinheiro público. Logo a peste, cuja vacina estava quase no ponto de ser
testada em cobaias – já que a população se recusou a experimentá-la, gerando as
primeiras revoltas populares urbanas da História do Brasil.
Logo a peste bubônica, que ironia. Muito injusto que a primeira cobaia
fosse sua mulher, mãe de sua pequena Marie. Em menos de uma semana, Chloé
definhou e faleceu.
Pascal enterrou a esposa como se fosse ele mesmo um zumbi. Não chorou,
não olhou para a morta, não perdeu o olhar para o horizonte. Deixou o cemitério
para casa na mesma carruagem fúnebre que levara a esquife mais cara que a
cidade podia oferecer. Foi ao lado do cocheiro, com Marie já com sete anos no
seu colo. A menina também estava apoplética, porem resignada. Não olhava tão
longe como o pai, mas fixou as retinas no balançar dos penachos roxos dos
cavalos à sua frente, e manteve um silêncio interiorizado até chegar em casa.
Lá, sim, correu para os aposentos dos pais, abriu o armário da mãe e abraçou
todo vestuário de uma vez só, até derrubar o cabideiro inteiro. Rolou no chão
enfurnada na panaria, chorou alto, chorou baixo, soluçou o mais que pode,
gritou e chamou baixinho pela mãe. Enfiou o nariz molhado em todas as dobras,
rendas e babados, pelos anversos e avessos, como se mergulhasse no cheiro de um
passado que não poderia ter passado assim tão de repente. E quando não havia
mais choro a chorar, arrastou seus joelhos até ao altar que Chloé trouxera da
França, com a imagem piedosa da Santa Françoise D´Amboise.
A santa fora uma beata da Idade Média de origem nobre, que ao enviuvar
de um Duque, entrou para o Carmelitas de Nantes, onde alcançou a missão de
Priora do Convento. Depois de sua morte, foi canonizada por tanto cuidar de
crianças enfermas e – por ironia do destino ou desígnios sábios de Deus –
faleceu da mesma doença que ajudava a curar, para servir de exemplo de entrega,
de desapego à própria vida para salvar outras vidas. Chloé e Pascal batizaram
sua filha única com o nome D´Amboise – sem saber que Deus também elegera sua
família para desapegar-se em função de outras vidas.
Depois de muitas orações diante de Santa Françoise, a menina correu
para os braços do pai no avarandado, que ainda mirava olhares para os
horizontes infinitos. Pascal recebeu um abraço firme, caloroso e da menina.
- Papa, quero ser
freira.
O desejo da pequena Marie de ser freira não pegou Pascal de surpresa. O
lar, agora combalido, sempre recebera fluidos de fé na presença de Marie, seus
vislumbros e seu enxergar além das retinas. Seu destino não poderia ser
interrompido pelas trapaças do próprio destino. Pascal era sábio e racional. Na
mesma semana, tratou de matricular a filha no Liceu da Purificação, um colégio
religioso preparatório para noviças. E assim Marie deu seu primeiro passo à sua
vocação de devoção a Deus e caridade com os desfavorecidos, seja pela
enfermidade, seja pelas desfavorecidos de uma sociedade que emergia injusta e
cruel, com quem não havia nascido em berço esplêndido. Não que os Chandizonts teriam
nascido nesse berço, mas por Deus, já eram considerados nobres e abastados em
suas atitudes.
Assim que Marie fora entregue aos cuidados do Liceu Nossa Senhora da
Purificação, Pascal lhe ofereceu um profundo abraço, que se misturaram a
grossas lágrimas na porta do colégio interno. Foi a menina que consolou o pai.
- Allez papa, Deus e mama
estão olhando por você.
Após desfazer o sonho de um lar no Riô de Janeirrô e deixar um estudo
profundo no Instituto Soroterápico de Manguinhos, Pascal embarcou num vapor em
direção ao porto de Marseille. Deixava para trás uma cidade linda, uma experiência
frustrante, várias saudades e uma dor. Mas se é que para toda dor existe um
alívio, ao chegar na França, Pascal recebeu a notícia que a vacina que ajudara
descobrir, estava começando a salvar vidas.
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