Há
tempos tive a visão clara da extinção do Português. Um grupo de
brasileiros, provavelmente recém-chegado, tentava fazer-se
compreender num restaurante de Lisboa. E entender o empregado. Um
deles acabou por exclamar: — Não entendi porra nenhuma!
Estará
o Português em perigo? A incomunicabilidade entre versões de uma
língua é um forte sinal de alarme. Uma língua tem um comportamento
semelhante a uma espécie viva: evolui a partir de uma antepassada,
ganha massa crítica de indivíduos, autonomiza-se, cria rebentos
semelhantes, pode expandir-se, pode ficar isolada, definhar e morrer.
Hoje,
existem cerca de seis mil línguas, fora os dialetos, mas todos os
anos desaparecem dez, em média. Com elas perdem-se os tesouros
culturais que veiculavam. E, tal como as espécies, uma língua, uma
vez extinta, não reaparece mais. O limite da sobrevivência situa-se
por volta dos cem mil falantes. Na história humana terão já
desaparecido mais de vinte mil línguas. Algumas, pelo contrário,
sobrevivem há mais de dois mil anos. O segredo do sucesso parece ser
o grande número de falantes. Como o número de indivíduos nas
espécies, o número de indivíduos que usa uma língua assegura-lhe
a continuidade.
Neste
ponto, o Português, com os seus 250 milhões de falantes, tem boas
condições de sobrevivência e até de expansão. Só o Brasil tem
quase 210 milhões. Outros milhões são falantes em grandes países
africanos com excelente potencial de crescimento. É uma das nove
línguas que, só elas, congregam metade da população mundial. É
como uma espécie endémica; o seu êxito é inquestionável. Evoluiu
do latim, a partir do regionalismo galaico-duriense, e conseguiu
constituir-se como língua autónoma, apesar do convívio contagioso
com o castelhano. Mas estes 250 milhões ainda falam uma só língua?
As
virtualidades que lhe deram nascimento podem ser também as que a
ameaçam. Como os tentilhões de Darwin, cujas populações insulares
evoluíram de maneira díspar devido ao isolamento forçado, as
diversas populações de falantes do Português, separadas por
oceanos e sujeitas à deriva linguística, vão desenvolvendo
línguas-filhas, afastadas da origem e entre si. O próprio
território imenso do Brasil, com as suas inúmeras paisagens
humanas, tem produzido e alimentado muitas, nas suas versões orais.
Que vão contaminando a escrita.
Neste
aspeto, os acordos ortográficos são, para a unidade da língua,
como as seleções de cruzamentos e de ninhadas são para os
criadores de animais domésticos: fortalecem, artificialmente, as
características de resistência desejadas. Parece, no entanto, que,
mais do que acordos, o que fortalece a unidade de uma língua é que
os seus falantes, por mais dispersos e distantes que se encontrem, a
usem, a oiçam, a leiam numa versão comum que, não sendo homogénea,
seja sentida como familiar, como os diversos timbres e modas vocais
entre os membros de uma família são entendidos como familiares, e
não língua estranha.
Outra
estratégia de preservação e expansão é a disseminação.
Enquanto as plantas desenvolveram estratégias de dispersão de
esporos e sementes, faixas das populações que falam o Português,
devido ao fado secular da pobreza, têm sido obrigadas a emigrar,
levando consigo a semente linguística. Esta estratégia, embora
tenha criado, ao longo dos séculos, bolsas de falantes da língua de
Camões, parece ter como resultado não mais do que um enquistamento
das primeiras gerações, e uma permanência linguística forçada
pela tradição, entre gentes remotas. A imigração, pelo contrário,
tem criado populações que se veem contaminadas pela língua de
acolhimento.
No
económico reside uma grande parte do poder de uma língua no
confronto com outras. O sucesso do Inglês reside muito na
racionalidade e na simplicidade gramatical dessa língua e na
brevidade da maior parte das suas palavras, mas assenta sobretudo no
poder económico dos países que a usam. Esse poder impõe-na nos
fóruns internacionais, nas agências de notícias e no
entretenimento. Há miúdos, pelo mundo fora, a entender o Inglês
desde os três ou quatro anos. O cinema introduz anglicismos na
linguagem de todos. O Inglês é um macho alfa em exercício. O
Mandarim será outro, em breve. Podem usar-se poucas estratégias em
presença de um macho dominante. Lutar é uma, mas costuma dar mau
resultado; fugir é outra, mas não conduz à procriação. Usar as
capacidades intelectuais para superar o adversário, imediatamente ou
a prazo, é o que consegue levar os genes a bom porto.
Na
seleção natural não há só competição; as simbioses e outras
formas de cooperação são modos de organização que podem
desencadear os resultados desejados. Por exemplo, conseguir que
outros países tratem o Português como segunda língua, e
vice-versa, é uma estratégia de cooperação que pode produzir bons
frutos.
A
força do audiovisual é enorme, chega a públicos imensos. Trocar
telenovelas, filmes e outros programas entre espaços do Português
permite tomar contacto com outros sotaques e, na prática,
homogeneizar a língua. Tornar aliciante e saborosa a palavra de uns
perante os outros é uma boa estratégia de sedução de falantes.
São “contaminações” positivas, que alargam e tornam coeso o
grupo.
De
importância menor, mas não negligenciável, está a palavra
escrita. Uma literatura pujante em Português, rica em vocabulário e
em sonoridades subjacentes, seria a cereja em cima do bolo
linguístico. Para que esta bela espécie não se extinga.
Joaquim
Bispo
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Esta
crónica foi uma das dez finalistas, na sua categoria, do Concurso
Literário de 2018 da Academia Leopoldinense de Letras e Artes,
Leopoldina, Minas Gerais, Brasil.
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Imagem:
Carlos Alberto Santos, Camões [um dos 124 cromos, a partir de
guaches, desta coleção], 4ª edição, [Lisboa], Agência Portuguesa de
Revistas, 1966.
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