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quarta-feira, 25 de julho de 2018

Sémen



O mundo desabou para Cátia e Flávio quando souberam que não podiam ter filhos. O veredito dos testes de fertilidade, em que ambos tinham andado enredados nos últimos meses, foi o mais cruel: tinham de abdicar da aspiração de transmitir vida. E criá-la. De construir um homem ou uma mulher, desde o nada à vida adulta.
Casados havia oito anos, tinham vivido tranquilos quanto a esse aspeto. Quando o decidissem, o ventre de Cátia incharia, tinham por seguro. No ano em que ela fez 35, decidiram que era tempo de terem um filho. Não convinha adiar mais.
Foi o período de maior e mais livre intimidade do casal. Todos os anteriores constrangimentos de gravidezes indesejadas tinham ficado para trás. Já não era preciso usar preservativo, já não era preciso tomar a pílula. Ou interromper o coito, quando ela descansava da pílula e tinham acabado os preservativos. O desfrute mútuo fora profundo e total.
Passaram os meses, mas as tentativas mantiveram-se infrutíferas, no sentido literal do termo. Depois tornaram-se frenéticas e cada vez mais angustiadas. Pressentiam-lhes a inutilidade. Por fim, tinham entregado as suas dúvidas à ciência, que os desenganou de vez.
Não é uma notícia com que um casal, ainda na casa dos trinta, lide bem. Só uns dias depois começaram a recordar e a dar atenção ao que mal tinham ouvido da boca da médica: Flávio é que não podia ter filhos. A sociedade moderna, felizmente, já dispõe de “soluções” que permitem ultrapassar esta situação de esterilidade, quer pela inseminação artificial, com base num banco de esperma, quer pela adoção. E há tantas crianças à espera de um lar de verdade!
Durante semanas levantaram hipóteses e trocaram dúvidas. Era evidente para Flávio que Cátia deveria tentar ser mãe biológica, antes de enveredarem pela adoção. Ela só punha a reserva do dador que lhe calharia: podia ser muito feio, podia ter taras. E outros medos que a situação de ausência de controlo lhe levantava. A brincar, disse que, como o bebé não se ia parecer com o marido, o ideal era que fosse tão bonito como o seu ídolo musical Vicente del Cuore.
A ideia surgiu e fixou-se, como mancha de cereja em toalha de linho. Por que não? A ideia parecera absurda quando lançada, mas expressa por palavras passou a ter uma existência de possibilidade. Havia a possibilidade de Cátia obter o sémen de Vicente; por que não? Podia apiedar-se do problema de Cátia e doá-lo caridosamente. Ou podia agradar-se do corpo de Cátia, que era uma mulher bonita: corpo bem torneado, rosto oval, olhos azuis, cabelo castanho claro caído sobre o seio esquerdo. Assim Cátia conseguisse seduzi-lo. Quando a ideia ganhou vantagem sobre outras e as expulsou, Cátia passou mesmo a pôr a hipótese de sequestrá-lo e obter o sémen pela força do Viagra, caso outras soluções não resultassem. Flávio estava por tudo.
Como primeiro passo, Cátia definiu a inscrição no clube de fãs de Vicente del Cuore. Depois, aproximou-se do grupo que acompanhava o cantor a todos os espetáculos. Ficou logo um pouco desanimada quando soube que, daquele enorme grupo de trinta ou quarenta mulheres em que metade queria meter-se na cama com o ídolo, apenas duas se vangloriavam disso. E que del Cuore devia ser muito cuidadoso, pois usara preservativo em ambos os casos. Não valia a pena pedir-lhe ajuda procriadora. Nem iria ser fácil roubar-lhe o sémen.
Soube, no entanto, que o cantor, embora esquivo nos contactos de intimidade total, era pródigo em contactos mais egoístas: oito confessaram, um tanto envergonhadas, que já tinham aceitado na boca a desejada semente do irresistível ídolo.
Por aí enveredou o seu plano. Pois que fosse na boca. Andaria sempre prevenida com um frasquinho de plástico. Se algum dia conseguisse o que antevia — e então isso parecia-lhe bem ao seu alcance —, disfarçadamente o verteria no frasquinho e de seguida, na casa de banho ou no carro, o introduziria em si, com um longo aplicador de plástico. Resultaria? Por que não?
Iniciou o jogo de sedução com olhares e sorrisos de coqueteria, na receção coletiva que o cantor sempre concedia às fãs depois de cada espetáculo. A que só ia em período de ovulação. Não queria desperdiçar a oportunidade, que provavelmente surgiria.
Uns sete meses depois, o artista deu pela flor que ela empunhava:
Minha querida, por si, pela beleza dessa flor que me quer oferecer, vou recebê-la a sós. Para me explicar por onde andou toda a minha vida essa sua beleza que suplanta a da flor.
O narrador dispensa aqui os pormenores sórdidos das técnicas e das manobras que um artista idolatrado usa de modo a transferir a veneração idealista de uma admiradora para práticas de submissão à sua vontade lúbrica. Neste caso, era um cordeiro que ingenuamente tencionava “comer” o lobo. Só que os lobos têm mais experiência que os cordeiros e antecipam as frágeis manhas das presas. Quando Vicente del Cuore percebeu que Cátia executava movimentos inesperados, logo após o orgasmo dele, deu-lhe um safanão que fez saltar o frasquinho e o seu precioso conteúdo para debaixo de uma cadeira. Levantou-se brusco e irado, abriu a porta do camarim e gritou pelo segurança:
Luís, tira-me já esta gaja daqui!
Cátia nem teve tempo de cobrir o peito. O segurança, entroncado e de braços tatuados, agarrou-a pelos cabelos, empurrou-a para outra divisão e obrigou-a a ajoelhar-se e a abocanhar o seu membro. Quando atingiu alguma excitação, forçou-a a dobrar-se sobre o tampo de uma mesa e penetrou-a brutalmente. A dor foi fina e cortante. Cátia gritou, mas levou um murro na cara, de través. Dois minutos depois foi abandonada no chão, ensanguentada, em lágrimas silenciosas.
Flávio levou muito tempo a conseguir que a mulher lhe explicasse o que tinha acontecido. Sentados no leito onde já tinham vivido tantas euforias, ela quase só chorava. Sentia-se humilhada e traída por todos, até pelo marido. Fora a sua infertilidade que a levara ali. Flávio mostrou-se revoltado e queria arranjar um grupo para dar uma sova no segurança de del Cuore. A não ser que ela fizesse queixa à Polícia. Cátia só tentava dormir. Não queria nem lembrar-se daquele animal.
O fisiológico, no entanto, segue o seu próprio caminho, sem cuidar das alegrias ou dos sofrimentos que pode desencadear no emocional. Um mês depois, Cátia soube que estava grávida.
Flávio ficou dividido: no fim de contas, era uma oportunidade de ela ser mãe. Que podia não se repetir. Cátia não via o lado útil da situação. Sentia-se magoada e atraiçoada até pelo seu corpo. Não era assim que imaginara ter um filho. Fruto de uma violação, como acontece nos cenários de guerra. Conseguiria amar e criar uma criança gerada naquelas circunstâncias? O que estava verdadeiramente em causa? Precisava de meditar profundamente.
Durante uma semana ouviu o seu íntimo, atenta e honestamente. Depois tomou a sua decisão.

Joaquim Bispo

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Este conto integra — páginas 128 a 131 — a 10ª edição da Revista LiteraLivre, em formato e-book, resultante de concurso literário de junho de 2018: https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_-_10__edi__o

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Imagem: António Grancho, Transmutação, 2017.

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6 comentários:

Obrigada mais uma vez, Joaquim.
Adoro ler os teus textos

Então o bebé nasceu bonito ?

Não temos acesso a essa informação. Cada leitor tem de lidar com as várias incógnitas. E talvez tomar decisões hipotéticas. Como dizia o outro: «E se fosse consigo?»

Não interessa quem é o pai o que interessa é que nasceu no nosso palheiro.

Presumo que essa é uma história tradicional, André. :)

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