O
mundo desabou para Cátia e Flávio quando souberam que não podiam
ter filhos. O veredito dos testes de fertilidade, em que ambos tinham
andado enredados nos últimos meses, foi o mais cruel: tinham de
abdicar da aspiração de transmitir vida. E criá-la. De construir
um homem ou uma mulher, desde o nada à vida adulta.
Casados
havia oito anos, tinham vivido tranquilos quanto a esse aspeto.
Quando o decidissem, o ventre de Cátia incharia, tinham por seguro.
No ano em que ela fez 35, decidiram que era tempo de terem um filho.
Não convinha adiar mais.
Foi
o período de maior e mais livre intimidade do casal. Todos os
anteriores constrangimentos de gravidezes indesejadas tinham ficado
para trás. Já não era preciso usar preservativo, já não era
preciso tomar a pílula. Ou interromper o coito, quando ela
descansava da pílula e tinham acabado os preservativos. O desfrute
mútuo fora profundo e total.
Passaram
os meses, mas as tentativas mantiveram-se infrutíferas, no sentido
literal do termo. Depois tornaram-se frenéticas e cada vez mais
angustiadas. Pressentiam-lhes a inutilidade. Por fim, tinham
entregado as suas dúvidas à ciência, que os desenganou de vez.
Não
é uma notícia com que um casal, ainda na casa dos trinta, lide bem.
Só uns dias depois começaram a recordar e a dar atenção ao que
mal tinham ouvido da boca da médica: Flávio é que não podia ter
filhos. A sociedade moderna, felizmente, já dispõe de “soluções”
que permitem ultrapassar esta situação de esterilidade, quer pela
inseminação artificial, com base num banco de esperma, quer pela
adoção. E há tantas crianças à espera de um lar de verdade!
Durante
semanas levantaram hipóteses e trocaram dúvidas. Era evidente para
Flávio que Cátia deveria tentar ser mãe biológica, antes de
enveredarem pela adoção. Ela só punha a reserva do dador que lhe
calharia: podia ser muito feio, podia ter taras. E outros medos que a
situação de ausência de controlo lhe levantava. A brincar, disse
que, como o bebé não se ia parecer com o marido, o ideal era que
fosse tão bonito como o seu ídolo musical Vicente del Cuore.
A
ideia surgiu e fixou-se, como mancha de cereja em toalha de linho.
Por que não? A ideia parecera absurda quando lançada, mas expressa
por palavras passou a ter uma existência de possibilidade. Havia a
possibilidade de Cátia obter o sémen de Vicente; por que não?
Podia apiedar-se do problema de Cátia e doá-lo caridosamente. Ou
podia agradar-se do corpo de Cátia, que era uma mulher bonita: corpo
bem torneado, rosto oval, olhos azuis, cabelo castanho claro caído
sobre o seio esquerdo. Assim Cátia conseguisse seduzi-lo. Quando a
ideia ganhou vantagem sobre outras e as expulsou, Cátia passou mesmo
a pôr a hipótese de sequestrá-lo e obter o sémen pela força do
Viagra, caso outras soluções não resultassem. Flávio estava por
tudo.
Como
primeiro passo, Cátia definiu a inscrição no clube de fãs de
Vicente del Cuore. Depois, aproximou-se do grupo que acompanhava o
cantor a todos os espetáculos. Ficou logo um pouco desanimada quando
soube que, daquele enorme grupo de trinta ou quarenta mulheres em que
metade queria meter-se na cama com o ídolo, apenas duas se
vangloriavam disso. E que del Cuore devia ser muito cuidadoso, pois
usara preservativo em ambos os casos. Não valia a pena pedir-lhe
ajuda procriadora. Nem iria ser fácil roubar-lhe o sémen.
Soube,
no entanto, que o cantor, embora esquivo nos contactos de intimidade
total, era pródigo em contactos mais egoístas: oito confessaram, um
tanto envergonhadas, que já tinham aceitado na boca a desejada
semente do irresistível ídolo.
Por
aí enveredou o seu plano. Pois que fosse na boca. Andaria sempre
prevenida com um frasquinho de plástico. Se algum dia conseguisse o
que antevia — e então isso parecia-lhe bem ao seu alcance —,
disfarçadamente o verteria no frasquinho e de seguida, na casa de
banho ou no carro, o introduziria em si, com um longo aplicador de
plástico. Resultaria? Por que não?
Iniciou
o jogo de sedução com olhares e sorrisos de coqueteria, na receção
coletiva que o cantor sempre concedia às fãs depois de cada
espetáculo. A que só ia em período de ovulação. Não queria
desperdiçar a oportunidade, que provavelmente surgiria.
Uns
sete meses depois, o artista deu pela flor que ela empunhava:
— Minha
querida, por si, pela beleza dessa flor que me quer oferecer, vou
recebê-la a sós. Para me explicar por onde andou toda a minha vida
essa sua beleza que suplanta a da flor.
O
narrador dispensa aqui os pormenores sórdidos das técnicas e das
manobras que um artista idolatrado usa de modo a transferir a
veneração idealista de uma admiradora para práticas de submissão
à sua vontade lúbrica. Neste caso, era um cordeiro que ingenuamente
tencionava “comer” o lobo. Só que os lobos têm mais experiência
que os cordeiros e antecipam as frágeis manhas das presas. Quando
Vicente del Cuore percebeu que Cátia executava movimentos
inesperados, logo após o orgasmo dele, deu-lhe um safanão que fez
saltar o frasquinho e o seu precioso conteúdo para debaixo de uma
cadeira. Levantou-se brusco e irado, abriu a porta do camarim e
gritou pelo segurança:
— Luís,
tira-me já esta gaja daqui!
Cátia
nem teve tempo de cobrir o peito. O segurança, entroncado e de
braços tatuados, agarrou-a pelos cabelos, empurrou-a para outra
divisão e obrigou-a a ajoelhar-se e a abocanhar o seu membro. Quando
atingiu alguma excitação, forçou-a a dobrar-se sobre o tampo de
uma mesa e penetrou-a brutalmente. A dor foi fina e cortante. Cátia
gritou, mas levou um murro na cara, de través. Dois minutos depois
foi abandonada no chão, ensanguentada, em lágrimas silenciosas.
Flávio
levou muito tempo a conseguir que a mulher lhe explicasse o que tinha
acontecido. Sentados no leito onde já tinham vivido tantas euforias,
ela quase só chorava. Sentia-se humilhada e traída por todos, até
pelo marido. Fora a sua infertilidade que a levara ali. Flávio
mostrou-se revoltado e queria arranjar um grupo para dar uma sova no
segurança de del Cuore. A não ser que ela fizesse queixa à
Polícia. Cátia só tentava dormir. Não queria nem lembrar-se
daquele animal.
O
fisiológico, no entanto, segue o seu próprio caminho, sem cuidar
das alegrias ou dos sofrimentos que pode desencadear no emocional. Um
mês depois, Cátia soube que estava grávida.
Flávio
ficou dividido: no fim de contas, era uma oportunidade de ela ser
mãe. Que podia não se repetir. Cátia não via o lado útil da
situação. Sentia-se magoada e atraiçoada até pelo seu corpo. Não
era assim que imaginara ter um filho. Fruto de uma violação, como
acontece nos cenários de guerra. Conseguiria amar e criar uma
criança gerada naquelas circunstâncias? O que estava
verdadeiramente em causa? Precisava de meditar profundamente.
Durante
uma semana ouviu o seu íntimo, atenta e honestamente. Depois tomou a
sua decisão.
Joaquim
Bispo
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Este
conto integra — páginas 128
a 131
— a 10ª edição da Revista LiteraLivre, em formato e-book,
resultante de concurso literário de junho de 2018:
https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_-_10__edi__o
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Imagem:
António Grancho, Transmutação, 2017.
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6 comentários:
Obrigada mais uma vez, Joaquim.
Adoro ler os teus textos
Obrigado, Incógnita!
Então o bebé nasceu bonito ?
Não temos acesso a essa informação. Cada leitor tem de lidar com as várias incógnitas. E talvez tomar decisões hipotéticas. Como dizia o outro: «E se fosse consigo?»
Não interessa quem é o pai o que interessa é que nasceu no nosso palheiro.
Presumo que essa é uma história tradicional, André. :)
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