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sábado, 16 de junho de 2018

Dos pesos

Duas calças, um vestido preto, um edredom de listras azuis. Confere. Já deixei pagos. Não, obrigada, eu não preciso de ajuda para guardar no porta-malas. O porta-malas está cheio; não cabe mais nada. Tem uma mala lá dentro. Tamanho gigante. Comprei hoje. Sim, no banco de trás pode ser. Mas é tão pouco peso que eu aguento sozinha. Eu aguento carregar até coisa mais pesada. Sim, eu volto semana que vem. Vou trazer mais peças. Dois conjuntos de blazer e saia, e um terninho. Não, não é tudo a mesma coisa. Terno tem calça. Conjunto pode ser de qualquer coisa. Tailleur. Chamava assim. Tinha que ser com saia. Terninho chamava slack. Acho que sumiram com um monte de palavras estrangeiras de uns anos pra cá. Os estrangeiros não sumiram. Só as palavras. Tem um francês que mora em cima de mim. Não. Acima. Não fede nem cheira. Tem cheiro de europeu, só isso. Bonito. Ô! Bonito. Se morasse em cima de mim eu ia gostar. Tem cara de bom amante. Faz barulhos de bom amante. Barulhos que não acontecem mais lá em casa. Mas ele mora acima. Infelizmente. Ninguém sumiu com ele como sumiu com as palavras estrangeiras. Vai ver é porque ele trepa bem. Tailleur e slack não deveriam ser lá essas coisas na cama dos linguistas. Dispensados com desonra. Tem doisedredons também pra próxima semana. O estampado com flores e o cor-de-rosa. Pesados. Mas eu aguento peso. Como estas onze sacolas cheias de comida. Penduradas em duas mãos. As minhas. Não, obrigada, eu não preciso de ajuda pra guardar no porta-malas. O porta-malas está cheio. Tem uma mala lá dentro. Gigante. Comprei hoje. Mas eu já disse isso. Pra moça da lavanderia. No banco de trás, agora, também não cabe mais nada. Tem duas calças, um vestido e o edredom de listras. No chão do carro? Pode, sim. Atrás. Cinco sacolas de um lado, cinco de outro. São só sacolas de comida mesmo. E uma vai comigo no banco da frente. Precisa, sim. Faz as contas. Onze não se divide por dois. Nem nove, nem sete, nem um. Eu não tenho TOC. Eu gosto de números ímpares. Por exemplo: um dia. Sem dividir por dois. Um prato. Um travesseiro. Uma toalha. Uma televisão. Sem dividir por dois. Todas as novelas; a das 6, a das 7, a das 9. Sem dividir o controle remoto. Nem a tela. Telejornal, não. Cansa. A cara certinha do William B. cansa. Menos a boca. De quem beija bem. Os certinhos sempre são os mais tarados. Como ex-seminarista. Dormi com um, faz anos. Banquete pra muitos talheres. Repressão liberada é fogo. É um tira-atraso toda hora. Menos na hora do telejornal. Telejornal corta qualquer tesão. Acidente, corrupção, futebol. Morte todo dia. Na tela. Na vida. Um peso danado. Mas eu aguento peso. Eu já falei isso também. Subi com um engradado de cervejas. Geladas. Tomei todas. De dia mesmo. Fiz a mala gigante antes da hora do jantar. Desci com ela depois do jantar. Pesada. Levando o que tinha que ir embora. Eu aguentei o peso. Não disse que aguentava? Agora, só falta guardar a mala no carro. Pesada. Dentro dela, o que não é meu. E se não é meu, vai embora. Vai sumir. Como sumiram o tailleur e o slack.
Boa noite. Não, obrigada, eu não preciso de ajuda pra colocar a mala no porta-malas. Não! Tira a mão daí! Larga essa mala, porra! 


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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


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