Quando menino, sonhava em ser mágico. A
velha fralda que se fazia de reluzente capa e a varinha improvisada com um
galho de cajueiro renderam-lhe os poucos momentos realmente felizes de sua
vida. Seus números mais notáveis consistiam em transformar pedras em calangos e
fazer desaparecer as pitangas atiradas à cisterna. Tinha como plateia a cadela
Nanica, uma gasta fotografia de Vó Benta e a cabeça de uma boneca, encontrada à
beira do córrego que cortava a fazenda dos Calixto.
A
mãe não gostava daquelas brincadeiras que distraíam o menino do trabalho no plantio
e da instrução religiosa. Indiferente às súplicas do filho, o ramo delgado foi
partido ao meio e a indumentária esvoaçante transformada em pano de chão. Fazer
o quê? Era para a graça de Deus e bem de seu rebento.
Teimosa, a magia perseverou clandestina
até a primeira seca, quando se transformou em desgraça. O pai ― pendurado pelo
pescoço em um caibro da pobre casa de taipa ― havia realizado seu último truque:
Escondera a própria alma em um pecado sem perdão.
Após
o agourento sumiço da cachorra e antes que a terra rachada se partisse de vez e
os engolisse faminta, decidiram fugir para a capital. Lá eu serei artista de televisão, fantasiava o menino à medida que
se esquecia das bolhas dolorosas que se formavam em seus pezinhos errantes.
Quando chegassem à rodoviária, a mãe tocaria pandeiro, ele cantaria para os
passantes e, com o apurado, comprariam duas passagens só de ida. Talvez
sobrassem alguns miúdos para um sanduíche de pão com ovo antes do sonhado
embarque.
Retirantes, estrangeiros na metrópole, alojaram-se
no barraco de um parente que os obrigava a trabalhar mais do que um dia haviam
lidado no campo. A fim de garantir o teto de zinco sobre suas cabeças, a mãe
cedeu aos abusos do cunhado e o filho ao sadismo do tio. Sofriam agarrados aos
santos que, cansados de tantas súplicas, fingiam-se de barro.
Todos os dias, sob um sol de cozinhar
cabelos em suor, o pequeno vendia limões nos sinais, enquanto olhava para
dentro dos carros e sonhava com a vida daqueles outros meninos, de mochilas
repletas de histórias e lancheiras que não conheciam uma tarde de fome e sede.
Os limões e o sol giravam no ar. Orbes,
esferas, movimento. Poucos assistiam ao espetáculo do engenhoso malabarista e
ninguém se dignou a aplaudi-lo. O sinal abriu no mesmo instante em que uma
bofetada do tio despertou-o de suas criativas escapadas. Um motoqueiro riu da
agressão e, malvado, passou de propósito por cima de um dos frutos caídos.
― Acunha, estropiço! ― gritou o tio, ao arrancar o sobrinho de sua solitária
apresentação ― Se tu quengar minha
mercadoria, eu te cubro de cascudo e sabacu.
Tu tá pensando que é o quê?
― Eu sou artista! ― gritou o menino.
Depois, meteu o pé na carreira. Vagueou por horas, até suas magras pernas não aguentarem
mais sustentar o corajoso equilibrista que era.
Em uma torneira de jardim, tomou um
generoso gole d’água e refrescou sua nuca. Menos afogueado, deu-se conta de que
se encontrava em uma praça viçosa, arborizada. Deitou-se para descansar em um
dos bancos de madeira e encolheu seu frágil corpo até desaparecer diante do
olhar daqueles que por ali passavam.
Sob o manto da noite que se insinuava,
sua inquieta cabeça formulou um último pensamento antes do porvir:
― Amanhã, vou ser domador de fera ―
sussurrou para si mesmo o jovem artista e, em seguida, adormeceu menino pela
última vez.
Emerson Braga
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