Era
por meados da década de 50. O contrato era de 100 escudos por mês e
“de comer”. Ficou a dormir num catre no palheiro e
arranjou-se-lhe uma mesinha onde comer logo à esquerda da porta de
entrada, separada do lume pelo monte de lenha. Os patrões e o filho pequeno comiam a dois metros dele, numa mesinha igualmente pequena e sentados
em bancos rasteiros. Os dois cães de caça andavam sempre por ali, à espera
que algo caísse da mesa.
A
casa dos patrões era ampla e contígua ao palheiro. No verão,
enchia-se de moscas, devido à proximidade com os animais, e também
não faltavam pulgas. Só tinha a estrutura interna em
taipa de dois quartos e um
“peneirador” onde também se guardavam a masseira, a salgadeira, a bilha do azeite, a talha das azeitonas e duas arcas. Por cima deste conjunto, um sobrado
onde se espalhavam as batatas e as cebolas para o ano inteiro. O
resto era espaço amplo de telha vã, com um grande arcaz, o
pote da água de usos de cozinha,
uma cantareira com uma bilha de água de beber, e uma mesa enorme, só
usada quando era preciso sentar muita gente numa matança do porco. O
lume era feito num canto, no chão, onde se cozinhavam as refeições
em panelas de ferro, e o fumo escoava-se pelas telhas. À noite, além
do lume, só tremeluzia a chama de um candeeiro a petróleo, que se
perdia na vastidão da casa.
Os
tempos eram outros. Não havia eufemismos — empregados,
trabalhadores agrícolas, assalariados —, só patrões e criados. A
penúria dos agricultores rendeiros era quase tão grande como a dos
criados, e não só na Beira Baixa. No entanto, vincavam bem as
diferenças. Por isso o ti Mné Lucas — como o chamavam — sentava-se a uma mesa separada
da dos patrões. E comia pão centeio. E dormia no palheiro.
A
situação era “natural”, mas, de qualquer modo, o velhote estava
por tudo. Nunca reclamava, nunca se queixava, nunca pedia nada;
aceitava o que lhe davam ou o que achasse natural apanhar: figos,
maçãs, ameixas. Certa vez, ralharam com ele, por ter apanhado mais
de dois quilos de “lenticão”, a cravagem do centeio, vendido para remédios, e que rendia bom dinheiro. E
foi motivo de galhofa quando uma vez pediu um martelo para bater um
prego nas decrépitas botas de sola de borracha, remediadas com
pregos. Um andava
a entrar-lhe na carne.
Para
o miúdo da casa, um catraio de seis
ou sete anos, a chegada de
um velhote carcomido, mas simpático, prometia animar o ramerrame
campestre. Sentiu curiosidade, alegria, carinho. Certa vez, pediu
mesmo aos pais que o deixassem acompanhá-lo no seu percurso matinal
com o rebanho. Foi uma longa e monótona caminhada pelas encostas
circundantes, mas o velhote acabou por animar o garoto
ao construir um pequeno redil de brincar com muros de pedrinhas, e cancelas feitas
de pauzinhos. Quando chegou
a hora de comer, partilharam ambos o pão centeio dele, com algum
conduto — certamente azeitonas, talvez queijo —, e ainda hoje o rapazito gosta da côdea queimada do pão centeio.
A
rotina de saídas dos patrões era irem à terra de quinze em quinze
dias, a uns doze quilómetros, onde a patroa tinha a mãe e duas
irmãs, mesmo do outro lado da rua. Até aos sete anos do garoto, iam
os três na garupa da égua: o pai escarranchado, a mãe sentada de
lado, atrás dele, e o miúdo ao colo da mãe, de pernas penduradas.
Depois, já iam de carroça, sempre com carga extra de trigo para
moer, ovos para vender, e outras cargas circunstanciais.
Nunca
passavam o natal no campo. Não faziam festa ou ceia especial de
natal, mas era uma data que nunca falhavam na terra. Exceto daquela
vez: havia um assunto que o patrão não quis deixar entregue a outros, talvez uma vaca a parir por aqueles dias. Portanto, ficaram todos no monte. E
nem avisaram ninguém, porque para isso era preciso ir até à terra
mais próxima, a três quilómetros, e enviar
uma carta. Não valia a pena; quando se fizesse dez ou onze da noite,
os familiares certamente suspeitariam que tinha acontecido um dos
inúmeros inesperados que aconteciam na vida do campo e descansariam.
A
ceia desse natal foi como a de muitas outras noites: batatas cozidas
com couves, acompanhadas com uma fatia de toucinho, rodelas de
farinheira e morcela. A única diferença foi que, apesar de não se
fazer habitualmente qualquer ceia especial, todos sabiam que era
noite de natal, até porque nesse dia a patroa tinha amassado as
filhós e tinham estado a fritá-las na caldeira de cobre antes da
ceia. E havia um certo sentimento de complacência no
ar. A patroa murmurou
qualquer coisa para o patrão, este meditou uns segundos e chamou:
— Ó
ti Manel, hoje é noite de natal. Venha aqui para a nossa mesa!
E
pela primeira vez em três
ou quatro anos, o ti Mné
Lucas foi comensal dos patrões. A princípio, não se falou muito
mais do que nas outras noites, mas o ambiente era afetuoso e no fim
comeram-se filhós à roda do lume. Nessa noite, para além de
algumas histórias já conhecidas, o ti Manel contou como acontecera
o seu casamento: era marujo embarcado e, certa vez, ao atracar em
Lisboa, soube por um conterrâneo que a sua noiva estava para casar
com outro. Meteu-se logo no comboio a caminho da terra, “pôs tudo
em pratos limpos” e casou ele com ela. Sentia-se-lhe na voz um
misto de alegria pela evocação de um episódio tão especial, e uma
nostalgia de tempos desaparecidos. Quando, pouco depois, se foram
deitar, todos levavam um aconchego de alma inusitado.
No
dia seguinte, o almoço foi guisado de batatas com um coelho bravo
que o patrão caçou nessa manhã. O ti Mné Lucas não estava
presente, porque andava com o rebanho, mas, à noite, quando chegou
ao lugar habitual, atrás da porta, foi mimado com um pouco do
guisado do almoço. Ainda antes de se sentar, meteu a mão num dos
bolsos do casacão remendado e amarrotado que usava, tirou uma
pequena escultura de uma
ovelha, talhada à navalha num tronquinho de giesta, e
estendeu-a ao deslumbrado miúdo.
Andava
o rapaz já pelos quinze anos, quando o pai, na expectativa de uma vida menos áspera como operário fabril, decidiu desistir da
lavoura, deixar os vários arrendamentos, vender rebanhos, vacas e o
carro de bois e abalarem todos para a aldeia. Nunca mais viram o ti
Mné Lucas. Parece que tencionava ir ter com uma filha a Lisboa.
Souberam que morreu talvez um ano ou dois depois.
Passaram
entretanto muitos anos, quase todos os protagonistas desta história
já morreram, mas a criança de então mantém
um especial carinho por ela e pela pequena escultura. Ainda hoje a
guarda e de vez em quando gosta de a ter exposta. Mesmo agora estará
a contemplá-la, ali na segunda prateleira da estante.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Julien Dupré (1851–1910), O pastor e o seu cão.
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8 comentários:
Não tenho ideia de como e porque recebi o primeiro email divulgando o Samizdat, mas fiquei encantado. Sou brasileiro e português, falo a falada aqui no continente mas leio sem qualquer problema a variante peninsular e adoro Saramago. Estes textos tem um sabor especial. Palavras que imagino estejam sendo salvas da morte por desuso, a me obrigar a consultar o pai dos burros. Estou nuito dos textos e muito agradecido pelo envio da carta eletrónica que me fez vir aqui.
Tempos lindos Bishop mas... muito amargos. - Muito bonito o teu conto cheio de verdade ! ! !
Do vazio ao alavão, o Xquim Bispo, continua imparável e reviver tempos de lembranças de terra, de giestas, que são gestas, do conduto tirado da corna, do tchoço, da francela, do percheiro, do cincho, da samarra e do cajado.
Pastores que assim cantavam a sua servidão...
Nós somos os pastores,
criados de servir.
E hoje por ser entrudo,
o patrão deixou-nos vir.
manelaperaltado.
Nostalgico...
Obrigado, Paulo, pelo alento implícito que as suas palavras constituem.
As variantes são tão distintas que, às vezes, parecem línguas diferentes. Mas a língua é tão rica que mantém bolsas de linguajares arcaicos, sobretudo em zonas rurais não contaminadas por falares urbanos e literários.
Abraço!
Eram tempos bem difíceis, Aníbal, mas tão normais para nós...
Cada atividade rural ou marítima tem (tinha) uma terminologia específica. Estou bem ciente desses termos ligados à pastorícia e ao fabrico do queijo, Peralta, mas estão cada vez mais distantes de mim. Não os uso, para não tornar os textos herméticos para a maior parte dos leitores. Mas obrigado por mos trazeres para a luz.
Abraço!
Sim, Baptista, algo nostálgico, algo penoso.
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