José Armindo Moreira da Motta foi visto almoçando com uma bela mulher, numa mesa de canto
do restaurante Volare, no centro do Rio de Janeiro. A voz passiva e a indefinição do sujeito
nesta vaga sentença ameniza a gravidade do fato. Vamos à verdade explícita: quem o viu foi
Maria Regina Gregori da Cunha, amiga de sua esposa Heloisa Bastos Moreira da Motta, que
não poupou tempo e saliva.
- Helô, não foi a primeira, nem a segunda, nem a terceira vez. Ele frequentemente almoça
com essa pequena na mesma mesa.
Heloísa ouviu calada, um tanto por estupefação, outro tanto por não dar trelas a mexericos a
respeito de um marido tão austero, trabalhador, gentil, pai zeloso e provedor como José Armindo.
Embora tenha feito ouvidos de mercador às maledicências recorrentes de Maria Regina, também
não poupou os ouvidos do marido, quando chegou já tarde da noite.
- José, sempre espero você para jantar, não importa a hora. Faço o cabelo, visto um vestido
sempre diferente, passo batom. Respeito sua dedicação e amor ao trabalho. Mas estou com uma
pulga atrás da orelha.
- Eu sei, Helô. Admiro sua compreensão com a Royal. Mas que diabo de pulga seria essa?
José Armindo é Presidente da Unidade Brasil da Royal Breddell Propaganda, multinacional inglesa
que cuida da Comunicação e Relações Públicas de uma vasta carteira de anunciantes do Império
Britânico na América Latina. Poderoso esse Moreira da Motta. Conquistou a confiança de acionistas
e chefes londrinos, a quem devia gratidão pelo cargo, que exerce desde 1957. São quase cinco anos
de bons resultados e lucros mais do que suficientes para os gringos lhe admirarem e respeitarem.
Sua devoção incondicional à empresa e às liturgias da função é algo louvável pelos pares e superiores. Voltemos às pulgas de Heloísa, pois.
- José, um passarinho me contou que você anda almoçando com uma bela mulher. Mais jovem do
que eu. Dizem até que é fina e elegante.
- Helô, diga a esse seu passarinho para engolir um saco de alpiste a seco.
- Ficou nervoso. Então é verdade.
- Pois é verdade. De fato, almoço pelos menos uma vez a cada quinze dias com a Sra. Áurea Lucia Smith. Faço questão de declinar nome e sobrenome desta senhora, com quem mantemos projetos comerciais para a Royal e para os clientes da Royal.
- Mas como uma mulher é tão importante, a ponto de ocupar o tempo de um executivo tão graduado?
- Trata-se de uma rara exceção, Helô. Ela representa uma empresa parceira com muita competência, apesar do desdém que você mesmo exala ao se referir a uma mulher que trabalha.
- Não se trata de desdém.
- Trata-se de pinimba. Trata-se do que a vida lhe ensinou, além de bordados, prendas domésticas,
etiqueta, disposição de talheres e francês fluente. Está surgindo uma leve tendência no mundo dos
negócios. Há algumas mulheres diferentes, que trabalham e não esperam maridos para jantar.
Lamento por dizer isso.
- Duvido que a moda pegue. Mulher decente não abandona o lar.
- Pois fique sabendo: são tão talentosas na profissão quanto você é dedicada ao ofício da administração da nossa casa.
- Obrigado.
- Você sabe que sempre prefiro você, do jeito que você é. Não aceitaria uma esposa que fosse diferente. Gosto de chegar em casa e sentir sua doçura.
- Eu sei que você me tem como esteio da nossa família, o que muito me honra.
- Pois, honre-se. O que se trata no momento é crer ou não crer que um marido como eu esteja à mercê de comentários de passarinhos, quando almoça com uma parceira de trabalho.
- Você sempre tem um jeito de me convencer.
- Sou assim mesmo. Não que a persuasão faça parte do meu dia a dia na propaganda, mas quero lhe deixar à vontade para escolher entre acreditar em mim ou no que é mal dito sobre mim.
Madá, a copeira, trouxe a sopa. Só dois pratos, as filhas já haviam se recolhido. O casal fez o sinal
da cruz, orou agradecido pela refeição e iniciou o jantar, que se deu em quase silêncio. Heloisa ainda
ouviu do marido o convite para conhecer a Sra. Áurea.
- Não carece, meu marido.
Helô teve medo estreitar relacionamento com uma mulher diferente de si mesma. Talvez fosse acometida de inveja. Talvez quisesse não chacoalhar o cômodo ritual de esperar o marido provedor,
a hora que fosse, bem arrumada, cheirosa e prestimosa. Talvez não quisesse saber mais o que as aparências diziam. Talvez fosse conveniente acreditar no bom marido.
Dia seguinte, à mesa num canto do Volare, Moreira da Motta e a Sra. Áurea marcavam presença.
- Ora veja, minha esposa ouviu fofocas sobre nossos almoços frequentes.
- Que tolice.
- Entendo. Faz parte da sua criação desconfiar de maridos almoçando com outras senhoras.
Assim como faz parte dos bons costumes esperar o marido para jantar, a hora que for. Ainda
mais um marido assoberbado pelo trabalho, bem sabe você.
- Concordo. Mas não deixa de ser uma tolice.
- Claro. Nunca faltou nada à minha esposa e à minha família, nada faria que lhes faltasse.
Mas mudando de assunto...
- Isso. Negócios. Vamos aos negócios.
- Mr. Breddell chega nesta quarta para uma semana de auditoria da filial.
- E você está preocupado?
- Neca de pitibiribas. Apenas me pediu para providenciar com você uma de suas garotas.
- Alguma preferência?
- Sim. Diz que gostou muito da moreninha da última vez.
- A Dominique?
- Acho que é esse nome. O gringo ficou doido com a dedicação da menina. Disse que no auge
das quenturas do amor gritava “I love my job, I love my job...”
Os dois caíram numa gargalhada contagiante. Aos poucos, retomaram a conversa.
- Dominique é uma das minhas melhores. Nunca lhe ofereci?
- Nem quero. Mr. Breddell não me perdoaria.
sexta-feira, 20 de abril de 2018
I LOVE MY JOB
por José Guilherme Vereza
1 comentário
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Este final é mais sofisticado do que eu esperava. Mas sempre mordaz e cético. :)
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