Desobediência


Engole o choro, menina! Que coisa feia essa manha!

Secando os olhos na manga do pijama e soltando fungados longos, suspirados, ela guarda a dor num lugar que ainda não sabe que se chama alma. Estica para a mãe os bracinhos pequenos. 

E ainda quer colo, depois dessa feiura toda?

Quer. Mas não ganha. Sentada no berço, agarra pelas tranças a boneca de pano e se deita sobre ela, soluçando.

Engole o choro, idiota! Aqui, ninguém chora porque apanhou na escola! Se chegar em casa chorando de novo vai apanhar é de mim! 

Choro guardado. Rosto lavado com água fria. A alma quase sem espaço pra ajeitar qualquer dor. Mas ela empurra até caber. No quarto, abraça as fotos dos artistas que adora. Todas compradas na banca de revistas. Autografadas e tudo. Gosta de pensar que cada autógrafo foi dado só para ela. E dorme sonhando com um beijo na boca do seu cantor predileto.

Engole o choro, mulher! Que merda é essa? Cala a boca! Se você não parar eu vou te quebrar todinha!

Quebra, não. Não tem mais pedaço inteiro. E essa coisa salgada escorrendo dos olhos é só um hábito de menina feia. Passa. É que de vez em quando a alma  expulsa uma dor que se revolta lá dentro. E a dor sai molhada. 
No banheiro, vira o rosto para cima e jura até para si mesma que as lágrimas são do chuveiro. 

Engole o choro, vovó! Por que é que velho chora à toa, hein?

É a novela. É gripe. Claridade. Cebola. Alergia. Eu posso parar, quer ver? Eu sei sorrir. Está vendo? Está vendo, sua porra de menina idiota? 

Engoliu todos os choros. Mas cansou de obedecer. E foi deixando vazar toda aquela água represada ao longo dos anos. Disfarçadamente. Gotejando. Até secar. 
Hoje, abriu a porta, desceu os degraus e sentiu a rua fria sob os pés tortos pelo reumatismo. Caminhou feito bêbada, esbarrou nas pessoas, abraçou os postes, berrou com as buzinas, dormiu com os mendigos. E estendeu os braços para o nada, essa alma enorme.

Comentários

Postar um comentário