Após um certo período sem escrever e publicar e virtude de uma doença na família, volto pedindo desculpas aos que me leem pelo desaparecimento. Volto com um conto inspirado numa ideia do meu irmão e que, infelizmente, ele não teve tempo de ler. Carlos, onde você estiver, fica a homenagem.
A Ceia dos Rejeitados
Simone cantando a versão de “So
This is Christmas”, comércio abarrotado de gado-gente
consumista, caixinhas em portarias, a obrigação de participar do
amigo oculto no trabalho e uma fingida atmosfera de concórdia
impregnando as pessoas. Nada disso me incomodava mais do que passar a
noite de Natal junto aos familiares. Conservadores, tementes à ira
divina ou mesmo hipócritas, pais, irmãos, tios e sobrinhos sempre
questionaram minhas escolhas, desde a iniciante caveira tatuada no
braço esquerdo – mais tarde tomado inteiro por dragões, seres
mitológicos e monstros de diversas estirpes – a minha opção
sexual finalmente assumida há alguns anos quando fui viver com
Nanda, minha companheira até hoje.
Juntas, decidimos que passaríamos
o natal em casa, na companhia de poucos amigos. Nanda ainda havia
questionado se minha saúde, precária nos últimos meses, não
atrapalharia nossos planos de anfitriãs. “Quero estar entre
àqueles que amo.”, sorri em resposta.
Deixamos o prato principal, o
peru de natal, sob responsabilidade de Rogerinho, nosso cabeleireiro
de longos anos e chef
de cozinha amador. Ele sempre aparecia em nossas reuniões com
quitutes, regalos comestíveis e outras guloseimas. Órfão de
família viva que o expulsara de casa aos treze anos quando o
descobriram nos braços de um vizinho, Rogerinho nos adotara como
duas tias quarentonas. Bebidas e complementos à ceia foram rateados
entre os outros convidados.
O primeiro a chegar foi Tarso.
Veio na companhia de uma quantidade imensa de packs
de refrigerantes de variados sabores – Tarso há anos frequentava
os alcoólicos anônimos – tudo sustentado pelos braços cuja
envergadura fizera sua fama de medalhista olímpico na seleção de
vôlei como meio de rede.
Ansioso como sempre fora, chegara cedo e sem deixar de reclamar da
algazarra dos cachorros presos no quintal sacudindo os trilhos de
Santa Teresa. Sofócles, Aristófanes e Ésquilo reagiram assustados,
latindo ante a ciclópica figura carregando quatro
dúzias de latinhas debaixo dos braços. Abriu o porão e venceu o
lance de escadas do nosso sobrado. Após descarregar a carga na
cozinha, deixou-se desabar no maior sofá da casa enquanto
choramingava:
– Aquela puta me largou de vez!
Tive um pouco de dó em ver um
gigante chorando feito criança enquanto nos explicava que desta vez
o rompimento com a esposa fora definitivo, que ele temia não ver o
filho crescer e que não estava ali para sustentar capricho de mulher
fresca. “Pelo andar da carruagem, acabaria leiloando minha medalha
olímpica!”
Depois, vieram Sascha, Alberto e
Miguel, amado trio “Dona-flor e seus dois maridos”. Ricos,
bem-apessoados e adeptos do poliamor, escandalizavam o jet-set
carioca com aquela união. Trouxeram vinhos maravilhosos.
A cerveja ficou por conta de
Adélio, dublê de ator de filmes de estética favela e funkeiro. Com
o nome artístico de MC Délio da Perereca, em homenagem à
comunidade do mesmo nome, caíra em minhas graças depois de haver
assistido a um desses filmes. Desejava encaixá-lo em um projeto de
seriado de humor que estava escrevendo para televisão mas que andava
hibernando em virtude da minha doença. Família? A dele havia sido
destroçada pela violência no Rio. Sobrara um irmão traficante,
perigoso e sanguinário, enjaulado em um presídio de segurança
máxima. Para o bem da sociedade, passaria o nascimento do Cristo na
solitária. Adélio trouxe uma loura oxigenada assemelhada às
panicats que ele esquecera de mencionar o nome nas apresentações.
Nanda me alertou sobre a demora
de Rogerinho. A febre, minha parceira constante dos últimos meses,
se manifestou depois de algumas horas de trégua. Alegando
indisposição, pedi para minha companheira encontrá-lo através de
uma mensagem de texto ou pelo celular enquanto fiquei a observar o
comportamento dos nossos convidados. Tarso, entre um gole e outro de
Coca-cola,
esculhambava a ex-esposa para Alberto que parecia atento a tudo o que
o campeão relatava, visto suas caras e bocas cambiando da indignação
à piedade ante cada resmungo. Sacha e Adélio conversavam
animadamente, enquanto Miguel por cortesia ciceroneava a loira, que
descobrimos se chamar Josiane, pelos cômodos da casa após
aquiescência de Nanda que, entrementes, tentava encontrar
digitalmente Rogerinho e nossa ceia.
– Não sabe da maior! O viado
está agora no supermercado comprando a porra do peru! – sussurrou
Nanda em meu ouvido. Podia sentir o ódio em seu hálito de menta,
mas como estava em tempos de paz e amor e a febre me deixava sem
disposição para brigas, pedi que ela relaxasse.
– Antes da meia-noite ele
chega…
– São quase oito horas,
Lídia! O cara ainda vai ter que preparar o Peru, arroz, a farofa…
A gente devia ter encomendando uma ceia pronta!
– A gentileza dele parece
carecer de responsabilidade.
Mudei de assunto para não me
aborrecer em um dia em que desejava harmonia entre os meus amigos. Se
quisesse confusão, teria pedido para que Nanda me levasse à casa
dos meus pais e suas ideias fundamentalistas, suas indiretas acerca
da minha vida, o quase desrespeito com minha enfermidade.
– Pensando em escrever uma
coisa curta, talvez um conto, para ganhar ritmo.
– Já tem o tema?, perguntou
Nanda.
– Umas ideias passeando pela
cabeça, nada definitivo, respondi.
Perto das nove, Rogerinho
finalmente apareceu. Tocou ruidosamente o a campainha. ouriçando
novamente os rottweilers. Rogerinho detestava interfones.
– O Cérbero está preso? -
gritou.
– Você sempre pergunta isso,
meu caro. Já sabemos dos seus conhecimentos rasos de mitologia e da
alusão aos três simpáticos cãozinhos de nossas anfitriãs –
debochou Alberto surgindo na janela do sobrado cujo pequeno quintal
abrigava os cachorros, nossa segurança em um bairro outrora
aprazível.
Subiu um tanto invocado pelas
provocações de Alberto, mestre nas ironias. Sascha o recebeu com um
selinho e Nanda com uma série de impropérios. Miguel tomou os sacos
de supermercados que ele tinha em mãos, em especial o mais pesado
que abrigava a ave. No sofá, Tarso se lamentava para mim.
– Dez anos de casamento com
aquela ingrata!
Rogerinho, após leve discussão
com Nanda, tratou de iniciar os preparativos para assar o peru.
Sascha e Josiane o assessoravam. Alberto, taça de vinho em uma das
mãos, duvidava dos dotes culinários do cabeleireiro.
– Esse só manja de quitutes e
tábuas de frios. Não deveríamos ter confiado tamanha tarefa ao
nosso pobre alisador de cabelos crespos – dizia a Miguel que
gargalhava em resposta.
Rogerinho não deixava por menos.
– Não fode, vértice podre do
triângulo!
Em meio a galhofas, burburinhos e
a música ambiente, levantei-me ainda um pouco amolecida pela febre e
fui à janela onde estava Nanda. Ela afagou meus cabelos e sorriu. O
hálito de menta agora exalava ternura.
– Está melhor?
Assenti com afeto. Ambas ficamos
observando a ladeira de paralelepípedos entrecortada pelos trilhos
de um bonde que raramente transitava. Havia um quase deserto de
almas. Um mendigo ocupava o outro lado da calçada deitado em seu
colchão maltratado pelo tempo. Saberia ele que hoje era véspera de
natal?
– Não faço a menor ideia, mas
a gente manda uma quentinha para ele assim que o Rogerinho conseguir
assar o peru.
O cabeleireiro travava naquele
momento árdua batalha contra a ave que já estava há algum tempo no
forno. Reclamava das instruções na embalagem, achando o tempo de
assamento curto. Sascha dava mais palpites que efetivamente ajudava,
Josiane preparava a farofa e o arroz enquanto os outros convidados
bebiam.
Pela nossa janela passava agora
Kátia. Descia de Santa Tereza rumo à Lapa levando seu rebolado
dentro do vestido colado e botas de cano alto. Teria ela clientes
naquela noite?
– Certamente que não. Quem na
véspera de natal vai procurar uma garota de programa? Não vai
ganhar nem para as passas.
– Que maldade, Nanda –,
ralhou Adélio enquanto lhe oferecia um copo de cerveja.
Ficamos os três a conversar.
Passaram dois policiais em sua ronda noturna e ao fundo ouvia-se o
ruído incômodo
de um caminhão de lixo. Para alguns trabalhadores e desfortunados
aquela noite se descortinava como outra qualquer. Despertados pelo
barulho, Sofócles, Aristófanes e Ésquilo novamente latiram. Nanda
achou que era hora de soltar as feras no quintal. O bairro andava
inseguro ultimamente. Desceu para cumprir a tarefa.
Finalmente,
por volta das onze horas, o peru ficou pronto. Orgulhoso, Rogerinho
exibia o assado em uma bandeja como fosse a cabeça de um Sansão.
Batemos palmas, Adélio a comparou com um avestruz, dado o seu
tamanho, eu o batizei por Fênix aludindo à minha esperada cura que
representaria um renascimento, Alberto preferiu apelidar nossa janta
de uma Ave
do
Estínfalo,
perigosa e, consequentemente, intragável. Josiane e Adélio
esculpiram interrogações em suas faces em sinal da suas ignorâncias
acerca de mitologia grega. Rogerinho, que só conhecia o mito do
Cérbero, também não entendeu a chacota. Os outros riram, com
exceção de Tarso que ainda pensava na ingratidão da ex-mulher.
Tomado
pelo clima festivo, Rogerinho exagerou em suas já clássicas
presepadas e começou a bailar pela sala equilibrando a bandeja. Em
um dos seus rodopios o pior aconteceu: um tropeço na borda de um
tapete e o peru ganhou vida, voando em direção à janela. Tarso,
que estava sentado próximo, ainda tentou um dos bloqueios que o
deixaram famoso mas conseguiu tão somente interceptar a bandeja.
Fênix foi espatifar-se no quintal e sob nossos olhares incrédulos
que lotaram o quadrado da janela vimos a ave ser destroçada pelas
mordidas dos rottweilers. Foi um espetáculo digno de uma arena da
antiguidade. Em parcos minutos o peru desapareceu entre as dentadas
de Sófocles, Aristófanes
e Ésquilo que, terminada a refeição, olharam para cima num misto
de agradecimento e quero mais.
Nanda,
ariana típica, tentou, a exemplo dos cães, estraçalhar Rogerinho.
Foi contida por Miguel e Tarso. Os outros convidados entreolhavam-se
atônitos ante o acontecimento. Rogerinho chorava, implorando
desculpas. A fúria de Nanda estancou e aos poucos, o ambiente foi
serenando e o processo de decantação de emoções deixou apenas uma
atmosfera decepcionante. “E agora?”. A pergunta coletiva ecoou
por toda a sala.
Pensei
alguns segundos. Não desejava que a noite natalina tão aguardada
tivesse um desfecho infeliz. Eu era uma roteirista, uma especialista
em tramas intrincadas e, por que não, finais felizes. Espremi toda a
minha criatividade e a solução, simplória veio de imediato. Disse
que iria descansar poucos minutos no quarto. Todos assentiram com
suas caras de velório. Nanda quis me acompanhar, creditando minha
retirada da sala aos eventos desagradáveis da noite. Tranquilizei-a
com um beijo na boca e fechei a porta. Minutos depois, retornei
sorrindo.
– Tudo resolvido. Nada de
perguntas e confiem. Ânimo, gente! Afinal, não estamos em uma
festa?
Aos poucos a normalidade, ainda
que desconfiada devido as minhas palavras, se reestabeleceu.
Rogerinho servia bebidas, Alberto servia sarcasmo. Um grupo
conversava sobre arte literatura, outro malhava o governo. Tarso
olhava o vazio abrigando um copo de refrigerante na manopla direita.
Sentada ao lado de Nanda, deixei minha cabeça cair em seu ombro. Os
cães, saciados, pareciam dormir.
Soou o interfone. Levantei-me e
fui atender. Minutos de ansiedade por parte dos convidados. Quando
abri a porta e deram com a figura do entregador gargalharam, uivaram
e aplaudiram meu ovo de colombo. Três pizzas superfamília de
calabresa, napolitana e de palmito, a predileta de Nanda, começaram
a ser divididas, não feito hóstias sagradas e sim a semelhança de
um ritual pagão, com voracidade e gula. Perguntei ao entregador se
ele gostaria de passar o natal conosco, prontamente aceito. Servi-lhe
uma fatia enquanto Alberto lhe ofertava uma taça de um vinho
californiano extraordinário.
No meio da confraternização
Nanda lembrou do mendigo. “Convide ele para cear conosco, amor”,
disse. Minha companheira foi buscá-lo. De princípio ele estava
acanhado e um tanto sujo pelas ruas. Oferecemos um banho e um roupão
e assim vestido ele integrou-se a nós. Sacha ofereceu cerveja, ele
preferiu refrigerante. ‘Não bebo, senhora. Obrigado.”
Da rua ouvimos os saltos de Kátia
estalando pelos paralelepípedos. Nanda a chamou para a ceia. Estava
em companhia de uma mulata aparentando um metro e oitenta. Kátia
perguntou se poderia levar a amiga. Nanda, coração batendo em
compasso natalino, permitiu. Foram recebidas com festa e animaram
ainda mais nosso natal com danças e relatos de suas aventuras pelas
esquinas da Lapa. Miguel mostrou curiosidade pelos nomes verdadeiros
das duas. Kátia, disse se chamar Sirlene. Já Vanessa, a mulata
estonteante de olhos verdes fictícios, era Luís Cláudio na
certidão de nascimento.
E foram chegando os policiais da
ronda noturna, garis, outras garotas de programa, michês, garçons
que deixavam o trabalho e meninos de rua que se revelaram corteses,
tratando a todos de tio. A nata dos rejeitados pela sociedade jantou
conosco naquela noite. O milagre da multiplicação da pizza
realizou-se em nossa sala, alimentando a todos. O ambiente regado de
confraternização e alegria, cerveja, vinhos e refrigerantes. Tarso
mostrou-se interessado em Kátia/Sirlene e esqueceu a ex-mulher cujo
nome nem eu lembrava. Rogerinho e o entregador de pizza flertavam.
À quatro horas da madrugada a
festa estava no ápice mas minhas forças se esvaíram e precisei me
deitar. Despedi-me de um por um dos convidados desejando feliz natal.
Mal fechei a porta percebi a diminuição do som e as conversas
sussurradas em respeito a meu repouso. Mas não consegui dormir.
Fiquei pensando nos acontecimentos da noite. Assim, acendi o abajur,
peguei meu caderno de notas e comecei a rascunhar esta história.
2 comentários:
Que história maravilhosa, Zulmar... :)
Muito obrigado
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