Entrou sozinho e disse boa
tarde a estender-me uma mão húmida e sem pressão, viscosa, mesmo. Nem lhe dei
atenção, a olhar a querida Margarida que afinal tinha vindo. Que bom, pensei eu
a beijá-la, efusiva, que eu gostava, e muito, que a minha amiga Margarida
tivesse conseguido vir. Ficámos a perguntar-nos que é feito, mas já ela cumprimentava
um outro que eu nem sei quem era: gente mais nova; gente que tinha entrado na
empresa, depois de eu me ter aposentado. E reparei que o homem continuava pespegado,
ali, a dois passos.
Tinha nele qualquer coisa
que ia mal com o sorriso tímido; um não sei quê falso estampado nos olhos
cinzentos com espessas sobrancelhas a sombreá-los.
Um bonito homem, mas
desinteressante, pensei eu enquanto via o Zé Eduardo a sorrir-me: que saudade!
e abraçámo-nos.
Tinha-me perguntado:
lembra-se de mim?
E eu não me lembrava, mas
não disse. Sorri-lhe, apenas, a olhá-lo como se tentasse descobrir algum traço
dele no meu passado, mas esvaida, sei lá eu porquê, de qualquer interesse.
Insistiu. Afirmou que tinha estado
um ano e meio na empresa, e eu nem duvidei, mas era como se nunca o tivesse
visto.
Não se lembra do Crisóstemo
Ricardo?! exclamou, e lá teria as suas razões para achar estranho que eu não o reconhecesse.
Mas não, nem aquele nome me
dizia nada; e não me lembrava da cara, se bem que achasse estranho que tivesse
esquecido aquele arzinho pacóvio a querer parecer ser outra coisa. Se o tinha
visto, varrera-se-me.
E ficamos assim, ele na dele
e eu na minha, cumprimentando os conhecidos que passavam, e eu talvez tenha
sido deselegante, antipática, mesmo, depois que ele voltou à carga: se eu não
me lembrava duma sessão em que ele tinha estado a dizer versos; assim mesmo o
disse: versos; e eu ri-me, dei uma gargalhada descomposta e disse, peremptória,
como ainda não lhe tinha dito: não, não me lembro, nada; e disse desculpe; mas
não, não tinha qualquer ideia daquela cara.
Terá ficado ressabiado
que esta gente tímida armada de vaidades ou, melhor dizendo, esta gente vaidosa
a dar ar de tímida, é gente para ser levada com jeito ou ficam ressentidas e
viram feras.
Nem terá sido o caso e,
ainda assim, Ana Cláudia viria contar-me, lá pelo fim do dia, ela que adora
ouvir num lado e vir contar no outro.
Sabes? começou.
E repetiu, adiantando.
Sabes? aquele insonso do Crisóstemo...
Quem?! interrompi-a eu.
Aquele que ficou a teu lado na
mesa, ao almoço.
Sim, tinha ficado na mesa em
que almocei com mais nove funcionários, uns já aposentados, como eu, uns velhos e outros na flor da idade. Ficara sentado do meu lado esquerdo. Coisas
de acaso, ou porque tínhamos organizado as mesas pela letra do primeiro nome, e
lá estavam os Carlos, dois, as Célias como eu, que éramos outras tantas, uma Cátia,
um Celestino, uma Cristina, uma Celísia e uma Cinthia, brasileira. E o dito Crisóstemo.
Ana Cláudia ficara na mesa
dos ás.
Estava esfusiante num
vestido amarelo a dar-lhe pelo tornozelo, com um decote em bico até meio das
costas. Calçava sabrinas pois, dizia
ela, os saltos altos lhe faziam cãibras. Envelhecera com elegância e nem
pintava o cabelo de louro ou de azeviche, como a maioria das mulheres a taparem,
desgostosas, as cãs que se lhes vão espalhando; tinha o cabelo pintado num azul
mate que lhe ia bem com a cor dos olhos.
Ah! esse?! balbuciei sem o menor interesse e sem dar grande atenção à lenga-lenga de Ana
Cláudia. Ela queria contar-me. Dizer-me que o conhecia, ela que conhecia sempre
meio mundo em cada local onde estava; que ele era um presunçoso, um convencido.
E exclamava: ora o Crisóstemo que sempre teve a mania que ele é que sabe, e tu a
cagar postas de pescada. Ela que nem tinha estado na nossa mesa, teria ouvido
contar. Quem sabe se teria sido a Celísia que nunca tinha ido muito à bola com
a minha cara. Devia ter sido ela. E a Ana Cláudia repetia-a, prosaica e a
rir-se como se eu também estivesse a rir-me com ela: armaste-te e ele achou-se
depreciado.
Ora bem, convencimento e vaidade,
foi o que lhe vi bailar por baixo daquele sorriso de bom moço. Eu a pensar,
assim, com os meus botões, mas sem memória de quem ele seria.
Tem um sorrisinho manhoso numa
carinha de pacóvio, disse eu, mas Ana Cláudia nem me ouvia.
Cantava, lembras-te? dizia,
embrenhada apenas no que me queria contar.
E foi quando se me fez luz.
Lembrava-me, sim senhora! se
me lembrava, agora, do Crisóstemo! Tinha o cabelo aloirado e usava óculos com
lentes de fundo de garrafa.
Ao tempo que isso fora!
O Crisóstemo da
contabilidade que andava a tirar histórico-filosóficas.
O funcionário do primeiro
piso que fazia rimas. Ele mesmo o propalava: faço versos em rima.
E cantava, sim, cantava!
Sorri-me de não me ter
lembrado, antes.
Agora com cabelo
grisalho, teria mudado os óculos por lentes de contacto.
Cantava, sim senhora!
Desafinado e com voz de
falsete, sem alcance nem vivacidade, mas cantava.
Lembro-me, agora, dele, disse
eu a rir-me de ter descoberto e Ana Cláudia sem calar-se um instante a contar
que o tal Crisóstemo tinha dito barbaridades a meu respeito.
Deixei Ana Cláudia que falava, falava,
e dirigi-me ao fundo da sala onde o homem tomava um drink no bar que
improvisáramos.
Peço perdão, disse-lhe a
estender-lhe a mão que ele demorou a segurar porque nem entenderia a minha
aproximação.
E sorri a dizer-lhe:
E sorri a dizer-lhe:
Lembrei-me, só agora, dos
seus versos. Ainda canta?
Foi à capella que cantou e corou quando o aplaudiram.
E disse versos, como ele
mesmo apresentou: vou dizer agora uns versos que tenho escrito.
E disse.
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