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sábado, 3 de fevereiro de 2018

SINGIN´ IN THE SUN

Quem tem a pachorra ou a generosidade de me ler sabe que sou da ficção, com preferência a
histórias de amor, relacionamento e sexo, beirando às vezes o erotismo impropriamente dito. Crônicas são raras nas minhas teclas, embora tenha em Cony, Rubem Braga e Fernando Sabino
as melhores inspirações do estilo, sendo que este último gerou uma obra prima – A Última Crônica – que habita minha cabeceira e faço uso e abuso dela quando tenho ímpetos de chorar para lavar
a alma.

Mas chega de lero lero. O relato que se segue é uma crônica da mais pura realidade, porém seus contornos de absurdo levam a parecer uma ficção delirante.

No início do ano, fui classificado num processo seletivo para dar aulas numa universidade.
Tomei conhecimento da imensidão de documentos necessários e por sorte, tinha quase todos.
Por azar, vi que minha Carteira de Trabalho – que não usava há 12 anos - tinha sumido.
Há os que dizem -  como aprenderam a dizer o que lhes interessa e acreditar no que lhes convém – que “acabaram com a carteira de trabalho!”. Não. Empresas exigem o mesmo documento
azulzinho dos tempos de Getúlio Vargas em seus ternos de linho branco. Mas isso é outro assunto.

Com a documentação verificada pelo sabido Google, fui ao Poupa Tempo de Ipanema.
Burros n´água.  Era preciso agendamento pelo telefone e mais uma lista de providências, já que
a Carteira foi perdida. Fui orientado lá mesmo no Perca Tempo, ops, Poupa Tempo, a fazer o
boletim on line da ocorrência. Assim o fiz. Tanto quanto o agendamento pelo telefone, às 7 horas
da manhã, pois 7:05, conforme dica dos próprios funcionários, o sistema congestiona e só no
dia seguinte seria possível ser atendido. Mesmo assim, consegui: quatro dias depois, 13:42,
no Posto do Ministério do Trabalho em Marechal Hermes.

Na entrada, um cartaz gritante: “Desrespeitar um servidor público é crime previsto pela lei tal e tal”.
Imaginei o quanto de tentativa de estrangulamento deve ter acontecido naquele local. Nem tampa no vaso sanitário do banheiro havia. Mas havia um funcionário público direto e reto:

- Boletim On Line não serve. Tem que ter a assinatura de autoridade policial.

E mais não disse. Na mesma hora, voltei 24 km para a delegacia na otimista intenção de fazer o
BO ao vivo. Impossível. Era uma daquelas tardes de terror com mortes na Rocinha e a delegacia
tinha mais soldados prestando depoimento do que a Inglaterra nas vésperas de 6 de junho de 1944. Voltei no dia seguinte e consegui a assinatura do policial civil. Mas só pude reagendar para uma semana depois. No Centro.

- Estado civil?
- União estável.
- Não serve. Tem que ter certidão de nascimento ou casamento.
- Vivo numa união estável há 25 anos, conforme esta certidão.
- Só serve certidão de nascimento ou de casamento com averbação do divórcio. Original.

E mais a senhora não disse. Por outro golpe de sorte, tinha a tal certidão num daqueles baús que
você acha que só vai ser aberto por um ente querido depois do seu próprio óbito. Parti para o
terceiro agendamento. 7 da manhã no telefone.

- Hoje só tem 11:13.
- Ôpa! Serve! Onde?
- Itaperuna.
- Não tem outro local em outro dia?
- Aqui no sistema, só em março. Amanhã o senhor liga. Vai que dá sorte de alguma desistência. 

E mais a moça não disse. Neste meio tempo, a universidade me convoca para uma aula/prova
com todos os documentos em mãos. Fiz uma declaração de próprio punho, anexei o Boletim de Ocorrência e ainda descrevi os três protocolos dos agendamentos embarreirados. Foram gentis e compreensivos. Dei minha aula para uma banca, mas dependia da Carteira de Trabalho.
Parti para o quarto agendamento, só possível cinco dias depois, dessa vez na Central do Brasil.

- Número da carteira de trabalho.
- Mas não tenho! Foi extraviada, olha aqui o BO.
- Tem que ter o número da carteira.
- A senhora poderia me dar uma orientação sobre como remexer a memória numérica remota? Hipnose? Telepatia? Regressão? 

Ainda bem que ela não entendeu. Lembrei do cartaz de Marechal Hermes.

- Vai no Ministério do Trabalho no Centro. Eles devem ter o seu cadastro com o número da carteira.
- Obrigado.

E mais não disse. Voei de taxi para o Ministério do Trabalho, expliquei o caso a um senhorzinho sentado numa escrivaninha.

- Isso é só com fiscal. E fiscal só trabalha até meio dia. Volta amanhã às 9.

Por outra bafejada da sorte, encontrei no mesmo baú o extrato de retirada do FGTS do meu último empregador. O número estava lá. Eufórico, parti para a Delegacia fazer um novo BO com a
numeração exigida. Feito. E nova tentativa de agendamento:  só primeiro de fevereiro, pelo menos, no próprio Ministério no Centro.

Cheguei uma hora antes e de cinco em cinco minutos, acometido de um tique nervoso, abria e fechava a pasta conferindo os documentos. Tudo lá. Dessa vez, desde 5 de janeiro, vai.
Fui recebido no guichê com a notícia de que o sistema estava fora do ar. No mesmo instante,
recebo um e-mail da universidade exigindo a Carteira naquele mesmo dia, sob risco de desclassificação no processo. Fui soterrado por uma calma inédita, algo como um monge do
Nepal que nunca fui, levitando ou pisando em brasas com um sorriso idiota.
E alguma eternidade depois, o sistema voltou e tudo correu nos conformes da burocracia.

- Olha para a câmera. Aqui na minha mão. 

Click.

- Daqui a uma hora vai naquele guichê e pega a carteira.

Não sei se foram os 60 minutos mais tensos e longos da minha existência, sentidos pelos espasmos
do ponteiro do relógio – não, não há relógios digitais em repartições do Ministério do Trabalho. Também naquele dia não havia Ministro, nem Ministra, que está sub judice, condenada por descumprir as leis trabalhistas. Coisas do Brasil. Mas isso é outro assunto.
Segui parado em pé, observando aquele pelotão de servidores se arrastando malemolentes
para lá e para cá com papéis na mão – sim, papel na mão denota que estão atarefados - e
conjecturei que eles já conheciam a luz elétrica, mas certamente dormiam em camas com
penico embaixo. Estava começando a achar graça das minhas besteiras, quando algo me trouxe
à realidade

- Seu José?
- José de quê?
- José de Tal (não lembro o sobrenome)

Pronto. Não era eu. A paranoia me cochicha que embarreiraram minha Carteira.

- E venha Seu José Guilherme também.

Alívio. Na minha frente, o primeiro José, o tal de Tal, um senhorzinho bem humilde, nordestino,
rosto craquelado pela vida, carregando uma sacola de coisas no braço direito, começou a ser atendido.

- Polegar aqui no sensor.

Ele obedeceu.

- O direito. Esquerdo não serve.

O senhorzinho passou a tremer, gaguejar, balbuciar algo indecifrável em seu dialeto humilhado, enquanto tentava levantar a sacola pesada com a mão direita.

- O polegar direito! O senhor está atrasando a fila!

Foi aí que eu intervi, com elegância limítrofe.

- Senhor, ele não tem o polegar direito!

O servidor olhou com desconfiança para o cotoco, mas se curvou ao óbvio.

Chegou, enfim, a minha vez. Tudo correu rápido e bem, eu tinha polegar direito. Recebi enfim
a Carteira de Trabalho, verifiquei os dados, tudo certo, a não ser minha foto que me lembrou
meus ancestrais em Cro-Magnon. E saí correndo daquele lugar, antes que alguma força maligna pudesse fazer o tempo andar para trás.

Já na rua, por uma surpresa do acaso, a playlist da tecnologia que me embala a vida pelos ouvidos começa a tocar “Singin' In The Rain”. Aos primeiros acordes pan panan pan pan panan panan 
pan percebi que estava happy again. O sol era de rachar, céu de brigadeiro, calor estúpido de
verão no Rio.  Imaginei tirar meu guarda-chuva de dez reais que mora na mochila e sair
dançando, rodopiando em postes, pisando em poças, respingando alegria em transeuntes,
saltitando pelo meio fio até o metrô. Imaginei que algum carrancudo (há tantos nestes tempos patrulheiros) pudesse me fuzilar com um olhar de morte ao ridículo. E imaginei responder
ao chato imaginado, representante de todos que se puseram neste meu caminho de desvarios,
com a única expressão apropriada, legítima e insubstituível, que define sentimentos
momentâneos indescritíveis: foda-se.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20