Por Lohan Lage Pignone
(Contém spoillers)
Quando o herói hesita, o mundo inteiro
para à espera de sua decisão.
A pedra está ali, bem
no meio do caminho. E agora, José?
Assisti
a oito dos nove indicados ao Oscar de Melhor Filme este ano. Tentando rascunhar
um painel do que a Academia decidiu apresentar ao mundo, percebo algumas
nuances sintomáticas dos nossos tempos. E a mais contundente, no meu entender,
é a coragem de vivenciar a liberdade.
Nadar contra a maré
talvez seja o maior dos desafios. Sobretudo quando a maré está pra peixe. Viver
a liberdade é cruzar uma linha invisível em um oceano. Superar a exaustão, as intempéries,
o ímpeto das ondas. É Truman em seu veleiro, buscando escapar de sua cela
hiper-real. Exige coragem, senhores. Já dizia Ana Cristina César que “virar
pelo avesso era uma experiência mortal”. E o que seria a liberdade senão virar pelo
avesso, dadas as circunstâncias da nossa realidade?
Morre-se
ou não. Renuncia-se. Ou não. Abre-se mão da reputação, da segurança, das
heranças, dos amores, dos hábitos. Not always. O herói vacila ao se aproximar
da caverna profunda. Pensa se de fato valerá a pena dar um passo no escuro. A
pedra está no caminho, e mais do que nunca é hora de contorná-la.
Em “Darkest hour”, o
personagem de Winston Churchill, interpretado por um monstruoso Gary Oldman, renunciou
a um acordo de paz com os nazistas e assumiu de peito aberto o risco de uma invasão
iminente, apoiando-se nos apelos patrióticos do povo inglês. Já em “The Post”, Kay,
vivida pela recordista de indicações ao Oscar, Meryl Streep, renunciou a uma
amizade de longa data, ao governo, aos banqueiros; em nome da liberdade de expressão.
Em “Lady Bird”, a passarinha vivida por Saoirse Ronan voou para longe do ninho.
Em “Three Bilboards”, o desfecho aponta um dilema na trajetória dos personagens
de Mildred Hayes (Frances McDormand) e Jason Dixon (Sam Rockwell), também
calcado em um ato de coragem em prol da liberdade; todavia, aqui, de uma liberdade
que é viver sabendo-se juiz do próprio destino, livre de qualquer martelo de
tribunal ou dependência legislativa. Em “Call me by your name” a coragem está
no processo da descoberta, que demanda a uma experimentação múltipla, atendendo
a uma ebulição inexorável de vida por todos os poros. E ainda, eu diria, que o
protagonista Elio (Timothée Chalamet) finca no solo de uma geração a bandeira da
liberdade, destituindo um território antes ocupado por personagens como o seu
pai, Mr. Perlman (Michael Stuhlbarg), que preferiu não contornar a pedra
drummondiana e seguir adiante à caverna profunda.
Essa
dona coragem também permeia a “Dunkirk” de Nolan, quando civis tomam a frente
da operação Dínamo – instituída, vejam só, pelo Churchill de outro filme
indicado – e tudo funciona como uma corrente eletrificada pela bravura e convicção
na tomada de decisões que salvam vidas, modificam o destino de uma nação e impedem
uma nova e nefasta configuração do mapa-mundi. Em “The Shape of Water”, Elisa
(Sally Hawkins) é a heroína que busca, simplesmente, a liberdade de ser humana.
É preciso coragem para se ter humanidade em um mundo repleto de seres
monstruosos... em um mundo onde seres devoram-se uns aos outros por conta da
etnia, da sexualidade, da religião, da classe social. É preciso ter coragem
para assumir a forma informe da liberdade e do amor.
Por
fim, e não menos importante, ressalto a importância de um filme que aparentemente
“corre por fora” na disputa; mas que a meu ver, corre mesmo rumo à estatueta
dourada. “Get Out” não necessariamente vai à contramão dessa coragem para viver
o estado de liberdade, mesmo que ilusório; o filme de Jordan Peele apresenta um
dos melhores roteiros dos últimos tempos porque se propõe a expressar o chamado
e a força colossal que o sistema impõe sobre nós, meros mortais. É o filme que
grita “vá, coragem! Fuja desse sistema que te escraviza!”. Acompanhamos a
angustiante trajetória do nosso herói Chris, que busca atender a esse chamado;
chamado este que não se restringe ao conflito do filme, mas que reverbera desde
os tempos ancestrais, de todos os negros que deram suas vidas em nome da
liberdade; e sim, Chris assume essa responsabilidade histórica e combate a hipnótica
força de um sistema representado por uma família branca, de elite. É essa mesma
hipnose que vivenciamos, dia após dia, capitaneadas por aqueles que detêm as
ferramentas que exercem tal poder.
Ainda
não tive a oportunidade de assistir à “Trama Fantasma”, do cultuado Paul Thomas
Anderson. Mas não duvido que fuja desse parâmetro. A Academia Cinematográfica,
uma convenção tradicional histórica, exclama a coragem para que se viva a
liberdade; para que se rompa a teia obscura que entrelaça tantas vidas; para
que haja declarações livres de assédios, de preconceitos; para, enfim, poder
corroborar que o cinema é o farol que nos guia e encoraja neste oceano, e nos
auxilia a cruzar a tal linha invisível.
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