Quando
acordou, Victor Sooter percebeu que o estranho sonho da final
olímpica de Matança em Massa, em que, minutos antes, estivera
envolvido, fora desencadeado pela final do jogo de basquetebol entre
os Estados Unidos e a Sérvia, nos Jogos Olímpicos do Rio de 2016, a
que assistira, com o seu filho John de nove anos, na tarde do dia
anterior. A partida tivera vários momentos de grande disputa e pai e
filho tinham apoiado com saltos e urros a equipa pátria. Finalmente
a América vencera. Como sempre. Com uma vantagem esmagadora: 96–66.
*
No
sonho de Sooter, o vencedor da modalidade olímpica de Matança em
Massa não é previsível. Há vários concorrentes com boas
possibilidades, mas vão-se combatendo e eliminando uns aos outros.
No fim, o Estado Islâmico sobrepõe-se a outros assassinos em massa
e ascende a adversário dos Estados Unidos na final. A cada operação
americana, o Estado Islâmico responde com a eliminação de mais uns
quantos militantes curdos ou mais uns quantos aldeãos sírios.
Victor
Sooter tem um papel importante na disputa: como na vida real, é controlador de drones
de guerra. Como num jogo de vídeo, multiplica-se em disparos sobre
alvos inimigos: um comboio de abastecimentos, uma reunião rebelde, o
carro de um dirigente de milícias. Os marcadores de baixas rodam
ininterruptamente. Os Estados Unidos estão em risco de não
conseguir a medalha de ouro, como tinham conseguido facilmente em
2004 e 2008 contra o Iraque, e em 2012, contra a Líbia e a Síria.
O
polegar direito de Sooter metralha continuamente, enquanto a mão
esquerda coordena com grande perícia o sobrevoo do drone. As
explosões no solo sucedem-se, o marcador dos Estados Unidos avança,
mas o do Estado Islâmico parece descontrolado. Sooter faz um esforço
— o esforço que a pátria espera —, toma o comando de vários
drones ao mesmo tempo e metralha alucinadamente, acionando os botões
de disparo em sucessão coordenada e eficaz. No solo, uma sequência
ininterrupta de explosões indica-lhe que a sua missão patriótica
está a ser bem sucedida. O contador de baixas roda vertiginosamente.
A tensão é grande. Quem vencerá? Será preciso lançar outra vez a
bomba atómica?
*
Horas
mais tarde, na base de comando de drones, em Houston, Victor Sooter
recebe ordem de pilotagem remota de um drone da base de Bagram, no
Afeganistão, e ataque a uma aldeia das zonas tribais do Paquistão.
A inteligência aliada tinha detetado movimentações suspeitas em
área de influência rebelde. Depois de receber indicações da total
operacionalidade do aparelho, confirmar o acesso a todos os comandos
necessários, a qualidade das comunicações com os satélites
geoestacionários e das imagens de todas as suas 16 câmaras, Sooter
descolou e rumou para as coordenadas indicadas, à altitude habitual,
indetetável sem aparelhagem sofisticada.
Quase
hora e meia depois, sobrevoava a região montanhosa procurada, e logo
o estreito planalto onde assentava a aldeia referida. Sooter
confirmou, pelas imagens conjugadas, que decorria uma reunião de uma
dúzia de homens adultos, dispostos em semicírculo, vestidos de
claro e ostentando algo na cabeça, talvez turbantes regionais, cada
um com a sua espingarda nos joelhos.
Deviam
estar a preparar o ataque a uma esquadra de polícia ou a algum
quartel, como habitualmente. Várias daquelas aldeias eram
controladas por tribos rebeldes, responsáveis por várias ofensivas
contra forças da ordem. A uma vintena de metros do grupo armado,
percebia-se um ajuntamento de outros adultos e vários jovens e mulheres,
vultos reconhecíveis pelas indumentárias coloridas.
Era
um risco. Mesmo acertando apenas no meio do grupo armado, era
possível que muitas das pessoas próximas fossem mortas ou
estropiadas. De qualquer modo, não lhe competia decidir.
— Meu
major, foram assinalados vários civis muito perto do inimigo. Que
faço?
O
superior hierárquico observou as imagens, por um momento.
— Esborracha
essa mosquitagem toda! Quantos menos sobrarem, menos picadas depois.
Sooter
posicionou o aparelho nas coordenadas adequadas e, após estabilizá-lo,
movimentou lentamente o controlo do disparador. Quando o cursor se
imobilizou bem a meio do grupo inimigo, fez uma verificação dos
outros parâmetros e comandos. Rodou a pequena tampa do botão
vermelho de disparo, destravou-o e fez o relatório final:
— Tudo
pronto, meu major: aparelho estabilizado, alvo enquadrado, mísseis
prontos. Aguardo autorização de disparo.
— Dá-lhes
com tudo o que tens! — gritou o oficial.
Sooter
recolheu-se por um momento. Sentiu o poder. O domínio absoluto. A
vida daqueles inimigos da América completamente nas suas mãos. A certeza de ser o instrumento da justiça possível encheu-o de uma serenidade solene.
Carregou no botão vermelho. A partir daquele momento, ele sabia algo
terrível que os inimigos desconheciam. A morte estava a caminho e
eles nem desconfiavam. Estavam mortos e não sabiam. Muitos daqueles
malditos, agora tão seguros e enérgicos, daí a momentos não
passariam de bocados de pasta mole e sangrenta. Não voltariam a ser empecilhos da ordem democrática que os Estados Unidos ofereciam ao mundo. Era desagradável, mas necessário; era a guerra.
Os
treze segundos passavam lentamente, mas Sooter sabia o que veria
dentro em pouco: os rastos instantâneos dos mísseis e logo as
explosões enegrecendo a imagem. Aquele terreiro tão liso ficaria
crivado de crateras. O seu olhar vagueou pelo grupo, pelo terreno, a
apreciar a ilusória imagem de ordem aldeã, o passado. Pareceu-lhe
reconhecer grandes letras ocidentais nos limites do terreno da
reunião rebelde. Julgou ler NOT, mas as manchas do que pareciam
letras confundiam-se com a restante cor do solo. Como em certos
testes de daltonismo. Tentou decifrar a linha de manchas, em vão; as
explosões ofuscaram a imagem de seguida.
Não
pensou mais nisso. De qualquer modo, nada daquilo já interessava.
Calma e eficazmente, levou o avião drone de volta à base no
Afeganistão, em total segurança.
Duas
horas depois, de regresso à sua vida de família, Sooter fazia a
vontade ao filho e assistia ao concerto na escola em que o menino
aprendia clarinete. Gostava tanto de música! Quem sabe se não
seguiria essa inclinação? Viviam no país das oportunidades, onde
era possível ser o que se quisesse, desde que se lutasse por isso.
Era um grande país! Tinha orgulho nele.
*
Uns
dias antes, numa aldeia remota do Paquistão, Samir, um menino de
nove anos, dirigia-se para a escola, por um caminho poeirento e ia
lançando olhares apreensivos para o céu. Era um brilhante aluno da
escola paquistanesa. A sua irmã, três anos mais velha, não tivera
esse privilégio. Fora prometida a um amigo do pai e ia casar em
breve. A boda traria à aldeia vários dias de comida, bebida e
dança, ao som de uma orquestra de dutares, um instrumento de cordas
tradicional. Porém, sagaz como era, o menino reconheceu o perigo na
forma dos instrumentos musicais, que, de longe, podiam ser
confundidos com espingardas tradicionais. Na escola, pediu ao
professor que lhe ensinasse certas palavras em inglês. Assim que
terminou as aulas, correu para o terreiro da festa e, em grande
azáfama, iniciou a grande tarefa de juntar e dispor muitas pedras a
formar uma mensagem para possíveis drones americanos: DUTARS NOT
GUNS [Dutares não armas].
Dias
depois, decorria a reunião festiva. A refeição fora farta e
saborosa; aguardava-se que a orquestra iniciasse a música para todos
dançarem. Reinava a alegria, exceto para Samir que continuava a
lançar uma angustiada mensagem mental aos céus, em inglês: Read
my stones [Leiam as minhas pedras]!
Joaquim
Bispo
Imagem:
Henri
Rousseau,
A
Guerra,
1894.
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(Este
conto integra a
coletânea
A
Arte do Terror
— edição
especial — História,
da Elemental
Editoração, 2017.)
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4 comentários:
Cenas da vida real. Aterrorizante.
É a loucura da guerra...
Há “todos os dias” vítimas civis nos ataques de drones americanos em países estrangeiros. No tempo de Obama, havia. Muitas são noticiadas nas páginas interiores da imprensa, mas a maioria é ignorada pela grande informação, de tão triviais, de tão incómodas para o “nosso lado”.
Como aparte informo que este teu comentário, Vítor, só ficou visível uma semana depois de o fazeres. Não foi a primeira vez que tal aconteceu. Estamos rigorosamente vigiados.
Abraço!
Sem dúvida, Carlos Vale. Mas muita dessa loucura seria evitável, acredito.
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