— Pai,
o Bruno quer que eu lhe empreste o street-skate
— lançou o meu sobrinho Sérgio, logo no princípio do creme de
ervilhas.
— Porquê? Ele não tem? — retorquiu o meu cunhado, meio desinteressado.
— Só
tem um dos básicos. Mas, como vai passar o fim de semana a Lisboa,
quer ir ao passeio do Parque das Nações com uma máquina a sério.
— E
então, emprestas?
— Achas?
Só entrou na escola o mês passado. Eu sei lá se ele mo perde ou o
estraga? — argumentava o meu sobrinho, para encobrir o egoísmo dos
seus 13 anos.
— Isso
é que não pode ser — devolveu o pai. — Se estraga, tem de
pagar. Ou comprar novo. Fora isso… Porque é que só entrou agora?
— O
pai veio trabalhar para cá. Acho que é técnico de máquinas na
fábrica.
— E
esse Bruno já te emprestou alguma coisa? Ou é daqueles que só
pede, mas nunca empresta? — tentava o pai avaliar o amigo do filho
pelo critério da reciprocidade.
— Ele
é um egoísta; está sempre a dar desculpas. Só me emprestou três
jogos para a playstation.
E foi porque eu lhe pedi muito.
— Mas,
vocês não são amigos?
— Sim
— concedia Sérgio, a contragosto. — Mas eu mal o conheço…
Foi
nesse ponto da conversa que eu intervim, aproveitando os momentos
antes do prato principal.
— A
questão da amizade, e de como lidamos com ela, é das mais
importantes, sobretudo para quem está a crescer, porque pode moldar
toda a futura maneira de estar na vida. A História e a Literatura
têm-nos fornecido inúmeros exemplos de amizades, desde Os
3 mosqueteiros, em que
há um companheirismo igualitário, à amizade, digamos, assimétrica
de D. Quixote e Sancho Pança.
— Lá
vem o momento Acontece
— ironizou a minha irmã, referindo-se ao extinto programa cultural
da televisão.
— Na
verdade — continuei eu, ignorando acintosamente a provocação —,
confunde-se frequentemente amizade com coleguismo. No coleguismo, há
apenas confluência de interesses.
— Então,
e na amizade, não há interesse? — avançou o meu cunhado, fisgado
no interesse, mas no interesse na conversa.
— A
amizade é algo bem mais desinteressado. Pode mesmo dizer-se que o
interesse está afastado da relação de amizade. É uma afeição
desinteressada, até altruísta, alicerçada na longa convivência
anterior, na qual todas as provas de lealdade e honestidade foram
superadas. A partilha é então praticada naturalmente, sem esperar
contrapartidas. Vou contar-vos o que me aconteceu em
1976, quando fui às vindimas a França.
Imediatamente,
cessaram as perguntas e a atenção redobrou. Histórias antigas eram
o gáudio do meu sobrinho, e até a restante família não as
desdenhava.
— Eu
não ia bem às vindimas; ia a caminho de Inglaterra, zangado com o
nosso país, mas aproveitei para fazer o caminho à boleia pelo sul
de Espanha. Demorei quase um mês a chegar a França e quando lá
cheguei estava com pouco dinheiro. Então, parei duas semanas numa
quinta acima de Bordéus para me reabastecer de algum dinheiro.
«Na
altura, ganhei uns 400 e tal francos.» —
Algumas lembranças pediam passagem, mas nem todas encaixavam na
coesão da narrativa.
— Chateado
com o frio que o início de outubro trazia e eu não previra, em vez
de progredir, resolvi voltar. E, como antes, aconteceram-me as
peripécias mais bizarras.
«Estive
mais de duas horas à espera por uma ligação telefónica para
Portugal.»
Entretanto,
os anfitriões apresentavam um bacalhau com batata doce que devia
estar suculento. O meu sobrinho, esse já estava preso à história.
— A
questão é que eu, para não gastar dinheiro desnecessariamente,
continuei à boleia. Fartava-me de andar a pé, e aceitava todo o
tipo de transporte. Antes de Bordéus aceitei boleia de uma
ambulância, que entrou numa via rápida, mas logo a seguir ficou sem
gasolina. O enfermeiro, em vez de me deixar ali, vestiu-me uma bata e
fomos ambos à boleia buscar gasolina. Simpático, não?
«Para
sair de Bordéus, andei 14 quilómetros a pé.»
— Ainda
nesse fim de tarde, a começar a chover, e sem encontrar dormida a
preços aceitáveis, o que me valeu foi um empregado português de um
hotel, que me cedeu, de graça, o modesto quarto dele, porque nessa
noite não dormia lá. Estão a ver o que é solidariedade, ajuda
desinteressada?
— Sem
te conhecer, tio? Fogo!
— Lá
fora, um compatriota é um meio amigo. No
dia seguinte, ia eu caminhando pela berma da estrada, no meio de uma
paisagem deslumbrante de verde, quando vi que outro caminhante se
aproximava. Era outro português que vinha das vindimas. Chamava-se
Zé Duarte
e
era um tipo surpreendente. De 26
anos e cabelo comprido, muito
alegre, disse que tinha andado
quinze
dias à procura de vindimas, sem êxito, e tinha gasto a “massa”
toda.
«Logo
aí, desconfiei que podia ser mentira, talvez com medo que eu o
“cravasse”.»
—
Disse
que tinha 6 passaportes conseguidos quando se lhe acabava a “massa”.
Ia
aos consulados portugueses, dizendo que fora roubado, e
aí
pagavam-lhe a viagem de regresso, davam-lhe dinheiro para comida —
200 ou 300 francos — e novo passaporte. Partilhei logo com ele uns
“comes” e cigarros. Nada de mais, se pensarmos que éramos ambos
portugueses e jovens e estávamos na difícil condição de
“penduras”.
«Nada
de mais, realmente. Mas se ele me tivesse pedido dinheiro? Hum, não
sei, não!»
—
Nessa
noite, depois de algumas boleias, ora
separados
ora
juntos — numa delas, fui eu que intercedi por ele, que ia na
estrada depois de uma boleia —, alugámos um quarto baratinho com
cama de casal e lá jantámos também uns “comes” que comprámos.
—
Assim,
sem o conheceres, tio? — estranhou o meu sobrinho.
—
Pois,
arrisquei, mas confiei no bom tipo que parecia ser. Aliás, eu é que
pressionei, porque ele queria dormir numa gare ou num prédio em
construção, como tinha feito nos últimos dias. Disse que só tinha
100 francos.
«Arrisquei,
reconheço!
Devo ter confiado no esconderijo em
que tinha o
grosso do dinheiro — um bolso falso de umas calças que
iam no fundo da
mochila.»
—
Deixa
lá agora a história, senão não comes nada — ralhou a minha
irmã. Realmente, quase todos estavam a acabar e eu a meio do
bacalhau.
—
Desculpa;
está
ótimo. A batata doce dá-lhe um toque exótico — redimi-me.
Concentrei-me
na tarefa degustativa, enquanto os restantes faziam alguns
comentários, realçando a imprudência de me relacionar tão
proximamente com um desconhecido, ainda por cima com indícios
preocupantes. A minha cabeça, entretanto, debitava lembranças.
«Era
possível dormir por 60 escudos em Portugal, 100 pesetas em Espanha e
12 francos em França.
A
peseta estava a cerca de 50 centavos e o franco a cerca de 8 escudos.
Muitos
bancos espanhóis e franceses não aceitavam escudos, devido à
proximidade temporal da revolução portuguesa.
Só
se podia sair do país com um máximo de 7500 escudos.
Nas
fronteiras havia que passar por uma alfândega e por um controlo de
polícia.»
Quando
atacámos o queijo de pasta mole, continuei.
—
No
dia seguinte, a partir de Bayonne esteve sempre a chover.
Resignámo-nos a apanhar um autocarro e depois o comboio para Hendaye
e dali para Vitória, já em Espanha, tentando
esgotar
os últimos trocos franceses. O tempo das moedas nacionais tinha
destas bizarrias. Em Hendaye, o nosso grupo cresceu: um casalito
francês pediu-nos ajuda para passar a fronteira, porque não tinha
passaporte.
«Ele
talvez tivesse, mas era um menor de 17 anos. Ela nem idade, nem
papéis. Ambos a fugir aos pais.»
—
Em
Irun — a fronteira espanhola — o Zé disse-lhes para seguirem ao
longo da gare e da linha e saltarem o muro, para não passarem na
alfândega. Pouco depois, apareceram do outro lado da estação, já
na parte espanhola,
mas ainda cheios de medo.
—
Andavas
metido com boa gente... — ironizou o meu cunhado.
—
Quando
se passa por situações precárias, está-se mais disponível para
ajudar outros em situações semelhantes. Esse foi um dos meus
dias mais longos. Começámos por esperar 3 horas pelo
comboio. Eu distribuí os meus “comes” e fomos os 4 até Vitória.
«O
Zé tinha “erva” e o francês mostrou-se interessado em comprar.
Foram ambos fumar um “charro”. Voltaram
eufóricos.»
—
O
Zé todo o caminho cantou todas as canções e mais uma, desde revolucionárias portuguesas, algumas da autoria dele, até egípcias, brasileiras e chilenas. Não se calou durante o tempo
todo, enquanto os franceses e 4 espanhóis que iam no mesmo
compartimento, vindos das vindimas, adormeceram. Em Vitória, à uma
da manhã, todos os hotéis estavam cheios — disseram-nos — e os
que tentámos estavam fechados.
«Não
podíamos ir para a gare, por causa da miúda que tinha medo de ser
apanhada pelos “flics”.»
—
O
Zé sugeriu
dormir debaixo de um viaduto, eu alvitrei ir andando até amanhecer,
mas chovia um pouco e acabámos por entrar na porta de um prédio e
dormimos na entrada: eles metidos nos sacos de dormir, ela sentada
num saco e encostada a outro e eu sentado num degrau e reclinado
sobre a mochila, e depois deitado em cima de um tapete de arame.
«O
francês pagou por “erva”, que daria para fazer talvez uns dois
cigarros, 400 pesetas, contadas ali na obscuridade e no silêncio
imposto de uma entrada de residências.»
—
O
frio não foi nada meigo. Posso garantir-vos que é das piores
maneiras de passar uma noite.
—
Então,
e
a solidariedade e a amizade que tens estado a apregoar? — voltava
ao ataque o meu cunhado. — Eles no saquinho e tu ao frio!
—
Estávamos
todos irmanados no sacrifício e continuávamos juntos, que era o
principal. Não havia era sacos para todos… — tentei eu a
justificativa pelo circunstancial.
—
E
depois, tio?
—
De
manhã, nada se via ainda e já havia muitas pessoas a passar na rua. Alguém
começou a descer as escadas do prédio onde estávamos e eis-nos a
levantar de um salto, a arrumar as coisas e a “cavar” porta fora.
A rapidez não foi suficiente porque o fulano que desceu viu bem que tínhamos saído do prédio e que tínhamos ar de ter
estado por ali “acampados”. Os outros voltaram a deitar-se. Eu
apenas me sentei — o frio era muito e eu ansiava pelo dia. Outros
moradores desceram, mas dessas vezes sem reação da nossa parte. Daí
a bocado, fomos para a estrada e separámo-nos. Nunca mais vi os
jovens franceses.
—
E
o outro gandulo? — mais
uma “farpa” do meu cunhado.
—
Até
Burgos, ora intercedia eu por ele, ora ele por mim. O pior é que
caía uma chuva gelada, de que nem a toalha que pus pela cabeça
protegia. Na última boleia, no quentinho do carro e com a noite mal
dormida, o sono atacou-me bem. Em Burgos, fui trocar 1000 escudos por
pesetas e nem me despedi do Zé, pensando que voltaria a encontrá-lo
mais tarde, mas não.
«Estava
cansado, chateado com o frio e talvez temesse que o dinheiro do Zé
acabasse e ele se “pendurasse” em mim. Pequenices pessoais que
mesmo aquela tão especial viagem ainda não conseguira apagar.»
—
Nunca
mais o vi. Como gostava de o reencontrar para reavivar estas
memórias! Daí para a frente, talvez pela falta do otimismo do Zé,
talvez pelo frio, não aguentei muito. Vesti mais uma camisa — o
que perfazia uma camisola interior, duas camisas, uma camisola de
gola alta e um casaco de malha —, mas apesar de me abrigar atrás
de uma árvore, o frio entrava-me por todos os lados. Fui tomar um
café à gare dos comboios e lá fiquei a cabecear com os cotovelos
apoiados numa
mesa. Depois, comprei bilhete para Portugal. Que se lixasse a
sovinice. E a boleia e Espanha e mais o frio. Estava “pelos
cabelos”. Às 11 da noite estava na Guarda.
—
Ó
Mário — chateou-se a minha irmã — achas que isso são histórias
edificantes para o Sérgio? Andar feito vagabundo, a acamaradar com
tipos sem eira nem beira?
«E
não ouviste tu o que eu pensei entre aspas!»
—
Se
calhar, afastei-me do assunto principal. O que eu queria mostrar é
que podemos ajudar alguém, ser solidários e amigos, mesmo que não
conheçamos bem esse alguém. Há sempre uma incerteza no primeiro
contacto. O reverso é: como podemos ser generosos e magnânimos, sem
nos arriscarmos a ser usados e abusados? O que achas, Sérgio?
—
Sim,
vou emprestar o street-skate
ao Bruno. Já antes me tinha decidido. Mas se ele mo estragar, nunca
mais lhe empresto nada.
O
licor de ameixa após o café soube-me maravilhosamente.
Joaquim
Bispo
Imagem:
Joan
Miró, O
pássaro de plumagem levantada voa para a árvore prateada,
1953
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4 comentários:
Gostei de ler.
Agradado. Obrigado!
bem te disse: escreve....
E eu escrevo, Baptista! :)
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