Você pode me achar maluca, mas tenho dó de cotonetes. Se há alguma explicação, explico.
Sou neta única de um casal de avós daqueles que só existem em histórias fofinhas.
Ele Romualdo, ela, Lurdinha. Passei parte da minha infância e atravessei da adolescência
à vida adulta aproveitando as férias num sítio nos arredores de São João del Rey,
onde moravam.
Vovô era um velho comprido, espigado, magrinho, cuja cabeça farta de cabelos branquinhos
me intrigava por não ter ficado careca, como os avós fofinhos das histórias fofinhas.
Caladão, discreto, esguio, elegante. O tempo não foi lhe curvando, porém encolhendo
a barriga presa a um cinto quatro dedos acima do umbigo, que sustentava uma calça larga
de pregas até os chinelos que aconchegavam meias azuis.
Meu avô só usava azul. Calça, camisa, meias, casaco, pijamas, talvez cuecas samba-canção.
Só azul, tudo azul. Dos pés à cabeça branquinha. Cruzeirense, a mania da cor era resultado
de uma promessa de jamais mudar a indumentária absolutamente celeste quando o Cruzeiro de
Tostão dilacerou de 6 o Santos de Pelé. Eu não era nascida, mas lembro detalhes do jogo
através da suas palavras e lágrimas.
Lurdinha era o contrário. Espevitada e boquirrota, tinha a língua nos cotovelos.
A diferença de personalidade entre os dois era na falação, pois o corpo, a cabecinha de
densos cabelos brancos e a finura alta eram as mesmas. Apaixonada pelo marido, embarcou
na tal promessa e até camisola, os vestidos, os casacos de tricô, as saias longas e o
avental de cozinha também eram azuis.
Há lendas que se contam dos dois. Quando a vitoriosa FEB desembarcou na Capital Federal
em garboso desfile militar, estavam eles no Rio, na certa para homenagear alguns
conterrâneos de São João del Rey, uma das cidades que mais mandaram soldados para a Itália.
No meio da multidão, surge engalanado sobre um jipão o bravo General Zenóbio da Costa,
comandante da Infantaria da Força Expedicionária, celebridade nos jornais e revistas
ufanistas da época. Lurdinha não se conteve ao reconhecer um famoso, esgarçou o cordão de isolamento e explodiu em gritos esganiçados.
- Zenóbio!!! Zenóbio!!! Zenóbio!!!!
A voz era tão aguda e aflautada que abafou os rufares da banda marcial. Os cavalos da guarda
do general se assustaram, um Dragão da Independência caiu de um tordilho empinado e meu
avô imediatamente tratou de sumir com Lurdinha pelo povo, enfiando-se no primeiro bonde
que encontrou. Diz se deste episódio, que ao chegar na casa de parentes no Engelho Velho,
naquela noite a cobra fumou.
- Onde já se viu, Lurdinha! Um chilique de macaca de auditório! Em pleno desfile de heróis!
Certa vez, viajavam de ônibus de São João para Belo Horizonte, quando Lurdinha engrenou
a conversa sobre uma comadre que estava sendo traída pelo marido. Empolgou-se na prosa,
a ponto de falar mais alto que o coveniente, não só incomodando os passageiros, como também
- e principalmente - o discreto marido. E detalhou o ponto mais alto da carraspana da
comadre ao traidor em altos decibéis.
- Patife! Miserável! Cafajeste!
Para deixar bem claro que Lurdinha não estava lhe passando uma descompostura em público,
Romualdo elevou a voz, num tom acima do dela.
- Mas que coisa! Sempre achei o Juvenal um patife, miserável, cafajeste!
Histórias como as de Romualdo e Lurdinha transbordam. Cada um deve ter algumas para contar e
eternizar, mesmo sem ter presenciado. Passam de gerações a gerações como verdades que poderiam
ser, mas na certa, de tanto se contar, verdades sempre serão.
Mas uma delas eu vivi diante do meu nariz. Estava de namorado novo, quando fomos viajar pelas
Minas Gerais. No trajeto, um pernoite no sítio dos avós em São João Del Rey. Romualdo e
Lurdinha nos receberam com a fidalguia de sempre, uma mesa típica das delicias de Minas e
uma gentileza inusitada, avançada para a época, ao arrumar o quarto de casal para a neta e
seu namorado.
No jantar, deu-se o ápice da viagem inteira.
- Menina, você quer saber de uma coisa?
- O quê, vó?
- Seu avô está com herpes.
Silêncio. Colheres de bambá de couve rasgada paralisaram na beira de bocas semi abertas.
- No pau, minha filha.
Meu avô, bicou sua cachacinha, girou a língua pelos lábios, desviou o olhar da mesa para a
lua que ensaiava sair de trás dos morros de Minas e entrar pelo avarandado. Vovó trovejou.
- Não pegou essa doença comigo! Há mais de 20 anos não há sexo nessa casa!
Meu namorado se aproximou de mim em cochichos.
- É genético?
- O quê? Herpes?
- Não, a língua solta.
Claro que houve gargalhadas gerais e meu esguio e discreto avô, esguio e discreto
permaneceu, saboreando sua pinguinha mineira.
Foi a última vez que os encontrei juntos. Vó Lurdinha teve um mal súbito e Vô Romualdo
não entendeu porque ela estava demorando em ir para a cama dormir. Arrastou seus chinelos
com meias azuis até a sala e a viu sentada na poltrona, televisão ligada já fazendo chiado,
novelo de tricô caído pelo chão. Deste dia em diante, ele nunca mais falou. Nem uma palavra.
Nem queria saber de jogo do Cruzeiro. Permaneceu mudo perambulando pela casa por mais três meses, até que vestiu seu pijama azul, encostou a cabecinha branca no travesseiro, fechou os
olhos e resolveu encontrá-la para sempre. Tinham 99 anos ele, 95 anos ela.
Hoje, toda vez que uso cotonete, fico comovida, lembro de Vó Lurdinha e Vô Romualdo.
Não posso pegar um só e separá-lo dos outros. Dá peninha. Dá tanta saudade que sempre
pego dois. Olho para eles juntinhos por um instante eterno, as memórias brotam. Suspiro fundo,
vida que segue. Seco os ouvidos, as dobras das orelhas, embrulho num papel e coloco os
dois na lixeirinha. Um do lado do outro. Dois. Como creio que deve ser o número
da felicidade.
sábado, 20 de janeiro de 2018
A menina que tinha pena de cotonete
por José Guilherme Vereza
1 comentário
1 comentários:
Muito engraçado, tão bem contado como as histórias de antigamente. Gostei.
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