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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Catarse

Tasso não sabia cozinhar. Carla não andava de bicicleta. Ulisses era maltratado pela informática. Mônica não cantava nem no banheiro. Já Catarina não sabia era cagar, coitada. Via-se obrigada a manobras radicais durante a prática do número dois. Ah, a solidão dolorosa, a desgraça aguda de uma mulher prostrada em seu trono — qual náufraga ilhada há meses no coração do mar...

Chegava para se sentar no vaso cheia de esperança, mas logo se desiludia com o fracasso. Não era de muito drama, mas durante cada esforço defecatório sempre se queixava da vida. Às vezes fazia troça de si mesma: como uma profissional bem-sucedida, influente e respeitada era incapaz de executar uma tarefa tão básica e primordial como fazer caquinha?

Quando nasceu, sabia obrar com perfeição. Era um bebê normalzinho, coliquento, que enchia fraldas e chorava de bunda suja, reclamando a atenção da mãe, como qualquer outro neném. Foi desaprendendo com o tempo, por conta dum ressecamento cada vez mais crônico. A partir da adolescência, a preguiça do intestino se instalou com poder. Principalmente quando a garota passava um tempo fora de casa. Ensino médio, faculdade, mestrado, doutorado, empregos, viagens, namoro, noivado, casamento... Tudinho enfrentado com constipação. As gravidezes e os nascimentos dos filhos — por partos normais — agravaram o problema.

A princípio, ela procurou a ajuda de clínicos gerais e gastroenterologistas. Falou com a obstetra também. Colecionou dicas e receitas de purgantes e reguladores intestinais, comprados em farmácias alopáticas e homeopáticas, nas raizeiras da esquina ou arrancados da horta da vó. Experimentou azeite, ameixa, sene, pitanga, almeida prado, lactulona, naturetti, lactopurga, muvinlax e outros de sufixo lax, óleo mineral, metamucil, tamarine, supositórios de glicerina... (Na época ainda não se podia recorrer ao tal ministro laxante.) Experimentou até um remédio de nome esquisito, caríssimo, que, segundo o médico, iria dar "inteligência" para o intestino, iria ensiná-lo a funcionar legal. Papo reto? Não resolveu.

Catarina fez inclusive umas sessões de fisioterapia para reabilitação da musculatura do assoalho pélvico (um tratamento para tentar recuperar a ordem funcional proctológica — como se fossem umas aulinhas práticas de autoescola para o mau cagador aprender a dirigir os movimentos dos próprios fundos até chegar ao êxtase da expurgação). Mas a fisioterapia também não deu jeito. Outra experiência sem sucesso foi deitar-se no divã e abrir seu coração para o psicoterapeuta. Nem a cuca sarada ajudou a corrigir o funcionamento do traseiro.

É que o problema era fisiológico! Comprovou-se um autêntico defeito nos países baixos de Catarina. O diagnóstico só foi dado depois de muita labuta, quando ela enfim se consultou com um proctologista renomado da cidade. O doutor submeteu o fiofó da nossa heroína a vários exames e descobriu, afinal, o que causava o enguiço da paciente. Ela passou até pela abominável defecografia (um raio X da ação de cagar, exame deprimente, oferecido por hospital de rede pública: primeiro enfiam uma massa branca no ânus da sujeita e depois ela tem de se sentar numa cabine e apresentar ao seleto público de médicos e radiologistas como se comporta antes, durante e após seu belo espetáculo de catarse fecal).

O resultado da defecografia confirmou que Catarina precisava de uma correção cirúrgica de retocele. O tecido entre a parede posterior da vagina e a parede anterior de seu reto era frouxo, o que dificultava a passagem das fezes. As bostas ficavam lá, retidas naquela bolsa, teimando em não sair. Por isso, a coitada sofria com a defecação incompleta, força excessiva e manobras inacreditáveis para ejetar as preciosas pedras no vaso. A falta de disciplina e controle lhe causava constrangimento, desconforto, mal-estar, dor, fraqueza e uma coleção de hemorroidas.

Mas a história de Catarina não continuou essa bosta cocozenta pra sempre. Teve uma reviravolta de sucesso há alguns meses. O especialista entrou no palco do teatro da vida dela para salvá-la de sua proctodisfunção. Merda! Deu um show. Acertou em cheio na performance! A paciente enfrentou a cirurgia, teve o fiofó remendado e grampeado (procedimento bem chatinho, pós-operatório doloroso) e, enfim, reaprendeu a cagar como dantes. Aleluia.

Agora, antes de sair de casa para exercer a profissão, Catarina toma café da manhã, senta-se no vaso, faz seu serviço com eficiência, toma banho e se emperiquita toda, plena em suas faculdades vitais, como a maior parte dos cidadãos. Qualidade de vida adubada!

Pois bem. Tasso ainda não se garante na cozinha. Mônica não canta nada. Mas Catarina reaprendeu a evacuar e está feliz com seu hábil fiofó.

Ah, esta é uma obra de ficção e não deve entrar para os Anais da História. Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência. 

Maria Amélia Elói

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