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sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Acaba comigo

Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor... Tem, sim, senhor...  

Amanheceu com o bordão ecoando no cérebro. Não bastassem os anos da sua vida comidos pelo circo, ainda, de um tempo para cá, tinha dado para sonhar com as pessoas da trupe. No começo, fora tudo engraçado. Nada parecia ser o que era. Um mágico que tirava pessoas da cartola; um equilibrista que caminhava pé ante pé por um fio grudado no chão; um palhaço que usava terno e gravata, e bebia champanha no picadeiro.  Acordava ainda rindo, torcendo para que o sonho voltasse na noite seguinte. Voltou. Noite após noite, mês após mês, até ele quase enlouquecer.
De início, não ligou para o refrão. Que o que fica dos sonhos é mais a forma do que os sons; mais as cores do que os cheiros. Mas um dia percebeu que, de igual, os sonhos só tinham aquele estribilho batido e velho. Hoje tem marmelada? Tem, sim, senhor! Para sua maior irritação, nunca sonhava com o bordão completo. Uma frase hoje, outra amanhã. E voltava à primeira... Hoje tem espetáculo?... 
Demorou para notar que algo mais o incomodava. Descartou o refrão pobre, pensou nas pessoas que apareciam nos seus sonhos, imaginou significados ocultos, teve medos de souar a camisa, dores de cabeça inesperadas, palpitações. Por fim, deu-se conta: estava obsessivo. Logo ele, que já rira de tanta gente com suas manias de só pisar em ladrilhos inteiros, de perfilar objetos sobre a cômoda, de pendurar terços brancos no pescoço — e só serviam brancos — de contar e recontar as luzes no picadeiro, de usar a mesma cadeira para a maquilagem, de pintar as unhas deixando o dedo mínimo para o final. Logo ele, vivia agora com os dois versos caquéticos que aprendera em criança na boca, como uma espécie de mantra doentio... Hoje tem espet... Porra! O que tem hoje é trabalho! Para ele, sempre muito. 
Um circo de porte pequeno é uma família em crescimento — enfatizava Mestre Ambrósio, dono da trupe. — É preciso cuidar de tudo com carinho, com atenção, com tenacidade. Como se fosse a sua própria família, Geraldo Magela. 
A mesma ladainha, ano após ano. 
Mestre Ambrósio tinha sido palhaço em seus melhores anos. E dos bons. Desses que trabalham em companhias internacionais e dão entrevista nas cidades por onde passam.  Orgulhava-se de poder dizer que, ao contrário dos colegas de profissão, tinha conseguido economizar, para nunca mais ser empregado de ninguém. Quando a idade começou a pesar e outros mais jovens ganharam a preferência do público, ele se aposentou antes que o despedissem. Com o dinheiro das economias, abriu o seu próprio circo, pequeno, sem muitas atrações, mas organizado e promissor. 
Desde quando um palhaço vira dono de circo, hein?, exibia-se para os amigos. Pois este aqui virou!, dizia, batendo no peito magro.
Quem via de longe a figura ereta e magra de Mestre Ambrósio, cabelos pretos e finos que o vento sempre levantava, jurava, a princípio, tratar-se de um homem ainda jovem, talvez apenas maduro. Era bem de perto, na certeza das rugas vincadas como estradas de barro seco, que se contavam os anos. Muitos deles. Tantos que nem a pasta preta usada nos cabelos, dia sim, dia não, conseguia disfarçar ou amenizar. Mestre Ambrósio era realmente velho. Mas que todos guardassem para si essa opinião, não pedida nem admitida por ele. Só não se achava na flor da idade porque uma antiga amante, esperta, o havia convencido de que se dizer um homem maduro ou um homem vivido era mais charmoso e confiável do que se declarar um rapazola sem eira nem beira, sem juízo, sem lastro, sem recursos. Foi a partir daí que ele passou a proclamar-se vivido, maduro.  
Outra coisa interessante sobre ele era a necessidade que sentia de fazer uso de palavras difíceis. Palavras como tenacidade eram, portanto, um jeito de impressionar o interlocutor e fazê-lo pensar duas, três, várias vezes antes de dar uma resposta que não fosse à altura; ou de fazê-lo calar-se logo. Havia, ainda, muitas outras palavras que o velho gostava de ouvir soar nos próprios ouvidos, como soberbo, impávido — que vez ou outra substituía por intrépido —, deleite, estrepitoso, inusitado, vicissitude, peremptório. Guardava o voluptuosa para as mulheres, a quem chamava de damas ou senhoras, fossem ou não. E dirigia-se às que o interessavam usando um minha princesa ou um minha rainha, dependendo da idade de cada uma. 
A realidade é que ele, Geraldo Magela, ouvia essa história de “como se fosse a sua própria família” havia anos. Seguida de pequenos sermões repletos de palavras empoladas. Tudo sempre acompanhado do seu nome completo. Nada de Geraldinho, Gera ou Gê, como diziam os outros. Geraldo Magela era pronunciado quase como o nome do santo. Nunca havia entendido por que a mãe e o pai tinham lhe dado ess nome. Um santo que fora sacristão, jardineiro, porteiro, enfermeiro e alfaiate. Em resumo, pobre. Ora, que ideia! Adolescente, tinha feito pesquisas sobre alguns santos nobres, ricos. E imaginou-se sendo rebatizado como Ivo, Nolasco, Inácio. Nomes com melhor sina para atrair dinheiro. Enfim, coincidência ou não, tivera uma vida tão difícil quanto o dono original do nome.
Ali, no circo, era o faz-tudo. Lavava, limpava, maquilava os mais velhos, cujas mãos trêmulas e cujos olhos de catarata lhes roubavam a autossuficiência. Coordenava o pessoal da montagem e desmontagem da tenda principal, orientava os trailers na hora de formar um pequeno acampamento e, de quebra, era também o bilheteiro. 
Cansado de tanto trabalho, dirigira-se a Mestre Ambrósio para pedir uma redução nas suas funções. Afinal, além de ser o homem da força bruta no carregamento de peso e na limpeza dos banheiros, e de ser também o homem de mãos firmes para arrumar cabelos, perucas e chapéus, ainda tinha que atuar naquela função tediosa de bilheteiro. Recebido com tapinhas nas costas pelo patrão, ouviu dele uma explicação que satisfez a sua pouca vaidade. Por isso, dias depois, quando percebeu que havia sido apenas engabelado, deu de ombros. É que, para impedi-lo de deixar a bilheteria, o patrão apresentara argumentos que o dobraram: 

A quem mais posso confiar o meu dinheiro, sem medo de ser roubado, Geraldo Magela? Quem mais aqui, nesta companhia, é incapaz do furto, da burla, do ludíbrio?

Já amaciado pela metade, ouviu em seguida a outra metade do elogio: 

E quem mais tem uma esposa tão linda, educada, talentosa e valente como a sua, Geraldo Magela? Quem mais dorme ao lado de uma deusa e acorda relaxado e feliz todos os dias?

Era verdade. Aos 50 anos de idade, apaixonara-se por Rafaella, a estonteante atiradora de facas de apenas 19 anos que começava no circo na profissão herdada do pai. Quase cego, alcoólatra, cansado, Vladimir, o Rei das Facas, comunicou a Mestre Ambrósio que encerrava carreira. Antes que o desespero sequer chegasse à boca do patrão, anunciou-lhe também a solução: Rafaella, a filha que estudava na capital, assumiria o seu lugar no picadeiro. De início, houve apreensão por parte de todos, em especial do rapazinho que servia de alvo na arena. Mas assim que fizeram o primeiro treino, todos perceberam que aquela moça, além de bonita, dominava o ofício. A paixão começara nesse dia, ao vê-la tão segura e selvagem atirando aquelas facas. No entanto, nunca deu um passo em direção a ela. Acostumado a pensar em si mesmo como um homem insignificante, baixava os olhos sempre que a via. Foi ela quem, numa noite de trovões e falta de luz, aconchegou-se a ele, com medo da tempestade. E se fartaram de sexo na cama estreita do trailer. Gritos abafados pelas trovoadas; rostos mal iluminados pela luz ocasional de um ou outro relâmpago. E ela repetindo, sem parar: Acaba comigo! Acaba comigo! 
Aprendeu muito com Rafaella. Naquela noite e em outras que vieram em sequência. E nunca lhe ocorreu perguntar de onde vinham tanta experiência e tanta sede por sexo. Ele não ligava.
Passou a fechar a bilheteria com pressa, para correr ao picadeiro na hora em que ela se apresentava. Não lhe importavam as facas brilhantes, o rapazinho que servia de alvo, os aplausos e assovios intensos. Ele ficava ali, durante todo o número, vendo-a se movimentar na arena. Olhando para aquela bunda empinada dentro do maiô branco e apertado, contrastando com as pernas morenas, longas e lisas. As botas de salto muito alto, as mesmas que ela usava para pisar no peito dele durante a madrugada; os lábios vermelhos; o cabelo imenso solto sobre os ombros, e que ela girava no ar antes de cada faca ser atirada. Tudo o excitava. E era para tudo isso que ele corria. Embaixo das arquibancadas, no escuro, segurava com uma das mãos o membro teimoso que se agitava só em vê-la. Com a outra, afastava a cortina de entrada, para poder continuar olhando fixamente para Rafaella. E se imaginava rolando com ela bem ali, no picadeiro.
Foi ela quem o pediu em casamento. E ele achou graça na iniciativa. Dois meses depois, no cartório de uma cidade pequena, casaram-se. Em seguida, uma festa no circo, com os artistas, o pai dela e duas amigas que vieram da capital só para o casamento. Da mãe, ninguém sabia. 
Rapariga — disseram —Abandonou Vladimir com a menina e caiu no mundo com o amante fazendeiro. 
Alguns achavam que Rafaella era filha do amante, mas nunca tiveram certeza. E Vladimir cuidou dela, dando-lhe sempre do melhor. 
Geraldo Magela não queria saber daquelas histórias. Só pensava em estar com ela o tempo todo, filha de quem fosse. Amanheciam no sexo nervoso e intenso na cama estreita, e, ao longo do dia, ela o procurava para convidá-lo a voltar ao trailer. Rafaella era o espetáculo. E a ele só importava o espetáculo.
Agora, depois de tantos anos, tinha o mesmo tesão pela mulher. Mas, aos 62 anos, já não lhe era possível ter tantas ereções, antes tão fáceis. No entanto, Rafaella vinha se mostrando compreensiva em relação a isso. Nem reclamação, nem raiva, nem desprezo. Ao contrário, sempre que ele se desesperava em tentativas inúteis, ela o consolava dizendo que cada um é como é. Inconformado, ele procurou um médico na capital. A decepção foi imensa. Alimentara a certeza de que voltaria de lá com as pílulas azuis na mão, pronto para ser de novo o amante que sempre fora. Mas o coração, que já nascera com problema, não permitiu. Se tomar, morre, disse-lhe sem rodeios o especialista. Mais uma vez, Rafaella ficou ao lado dele. Tranquila, alegre, compreensiva, relaxada.

Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor... 

Não, de novo, não! Que sonho idiota! Desse jeito ia acabar maluco. Já nem sabia mais se estava dormindo ou acordado. Apertou os olhos com força, se recusando a abri-los. Estava decidido a não sair da cama antes de sonhar com o refrão inteiro. Quem sabe assim fosse capaz de se ver livre daqueles versos irritantes. Permaneceu quieto, mas não adiantou. Lentamente, foi ouvindo os sons externos se tornando mais altos que o próprio pensamento. Aborrecido, sentou-se na beira da cama e pensou que deveria procurar um outro tipo de médico. Um que arrancasse da sua cabeça aqueles sonhos doidos.
Ouviu, sem querer, a vozinha fraca da criança que passava ao lado do trailer:

Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor! 
Hoje tem marmelada? Tem, sim, senhor!

Não foi logo que a boca amargou. Eufórico com a coincidência, começou a repetir o refrão sem parar. Até que o verso final, do qual não se lembrava, gritou em seus ouvidos:


E o palhaço, o que é? É ladrão de mulher!

Naquela noite, alegando febre alta, não foi para a bilheteria. Devagar, caminhou até o trailer elegante do velho Mestre Ambrósio, rezando para não ser o que parecia, pensando em si mesmo como um monstro, como um homem indigno, de pensamentos abjetos. Mas, enquanto caminhava, voltavam-lhe nitidamente à memória as palavras que o consumiam: 

Quem mais dorme ao lado de uma deusa e acorda relaxado e feliz todos os dias?

Ele não estava relaxado. Nem era mais feliz todos os dias. Era Geraldo Magela, o faz-tudo. 
Quis correr, dar meia-volta, evitar a qualquer custo a certeza. Então, escutou os gritos que escapavam de dentro do trailer imenso: 

Acaba comigo! Acaba comigo!

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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


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