Ao depararem-se com uma capelinha perdida junto à desolada foz do Sorraia, poucos saberão as peripécias por que passou o santo do seu orago.
São
Batráquio nasceu em Sarilhos Pequenos numa família de apanhadores
de lamejinhas. Moço calado e solitário, desde cedo manifestou
problemas de relacionamento e comportamentos desviantes. Era presa
frequente de terrores noturnos e várias vezes desapareceu de casa,
sendo sempre encontrado escondido em locais isolados, como casebres
em ruínas ou abrigos de pescadores em canaviais. Mostrando-se avesso
à apanha de bivalves, acabou por aceitar tarefas de sacristão na
igreja de uma terra próxima, o que custou ao pai umas boas sacadas
de lamejinhas para o senhor padre da dita freguesia. Tinha então
dezassete anos.
Durante
meses, o serviço foi aceitável, com exceção do irritante jeito de
imitar
amiúde e em surdina o som de algum dos animais com que se cruzara,
sobretudo gaivotas e rãs. Era muito prestável no apoio ao padre, no
preparo dos paramentos e das alfaias litúrgicas, na limpeza da
igreja e no arranjo dos altares e dos santos aí expostos. Quando não
havia serviços religiosos, refugiava-se no despojado cubículo da
pia batismal, em busca de solidão, ou no escuro e reservado
confessionário. O que poderia ser um tempo de relaxamento e reflexão
tornava-se, frequentemente, em eternidades de pesadelo. É que o
demónio sabe todas as fraquezas de cada homem. Conhece as suas
aspirações mais inconfessáveis, os seus anseios mais pecaminosos.
E se, com muitas pessoas, — que alegremente se entregam aos
prazeres mais obscenos —, nem se dá ao trabalho de as tentar, em
relação a São Batráquio sabia que ele procurava resistir, se
amarfanhava de desejos reprimidos, lutava com quantas forças tinha.
Por isso o diabo tinha de lançar ilusões e insinuar as doçuras e
os encantos das práticas pecaminosas. Os cálices pareciam abarrotar
de iguarias, fazendo São Batráquio salivar e resmungar:
— Huarrh!
As
portinholas de todas as caixas de esmolas abriam-se por si,
oferecendo-se ao futuro santo em dezenas de moedas brilhantes. E ele,
de mãos trementes, grasnava:
— Huarrh!
Pelos
espaços vazios da igreja o diabo fazia desfilar belezas femininas de
provocante luxúria, de irresistível apetibilidade. E ostentavam o
rosto angélico das santas dos altares. O pecador, fremente de
desejo, coaxava:
— Huarrh!
Estas
eram as fases de maior penar, os tempos infindos em que ele agonizava
de dores do espírito, tentando conter-se. De dia, geralmente,
conseguia. Cravava as unhas na pele, lavava o rosto com pedras de
gelo, açoitava-se com o azorrague dos carrascos de Cristo atado à
coluna. À noite, era mais difícil. Muitas vezes, sucumbia:
empanturrava-se da bolacha de hóstias e do vinho de missa; com
demorado empenho e habilidade, conseguia retirar algumas moedas das
caixas; acariciava com redobrada sensibilidade os contornos dos
rostos sagrados de Santa Eufémia e da Virgem da Assunção e as
pregas da madeira pintada dos seus vestidos, temente, mesmo assim, de
se atrever a imaginar o hipotético corpo santo que se esconderia por
dentro.
— Huarrh!
Depois,
relaxava. Parecia que os seus atos não tinham consequências,
chegava a sentir-se feliz e confiante. Mas então, vinham as penas.
Os remorsos faziam-no amarrotar-se
por dentro, o medo dos infernos fazia-o tremer e chorar
convulsivamente. Tudo piorou, depois de ter bisbilhotado alguns
livros de arte do padre e se ter deparado com as estampas das
pinturas
de Jerónimo Bosch. Via demónios que ameaçavam esquartejá-lo com
navalhas de arranjo de peixe e arpões, com redes que o arrastavam
para o fundo das águas, criaturas horrendas cujos
olhos lançavam fogo, cuja urina derretia as lajes da igreja e cuja
boca cuspia vermes e exalava miasmas nauseabundos.
— Huarrh!
Então
o santo pecador jurava ser ainda mais forte da próxima vez que as
tentações o assaltassem. Mas os demónios que regem as pulsões dos
sentidos não desaparecem nunca. Às vezes parece que estão
esquecidos, que o pobre mortal foi relegado para a montureira dos
objetos usados e vencidos, mas há sempre um outro dia que amanhece
maldito. E mesmo os futuros santos, antes de vencerem os seus
demónios, são marionetas nas mãos nefandas do demo. E os pobres
pecadores voltam aos velhos pecados, com a mesma certeza do condenado
perante o cadafalso, mas com o entusiasmo das alegrias do êxtase.
Nunca tão bem é aplicado o conceito de “ciclo vicioso”.
Este
jovem pecador escolhia sempre o fim do dia para pôr em prática os
seus desvarios mais obscenos, com os quais mais se comprazia o diabo.
Depois de a igreja se esvaziar e o padre sair, fechava as portas,
apagava as luzes e mantinha acesa só meia dúzia de velas elétricas
das promessas. Certa vez, foi negligente. Não vendo o padre nem na
nave, nem na sacristia, convenceu-se de que ele já tinha saído. Na
verdade, o clérigo ficara sentado no confessionário, após uma
confissão particularmente deprimente, meditando nas atribulações
das vidas dos pobres, e acabou por adormecer. Quando saiu de trás do
pano, deparou com o jovem sacristão em cima do altar de Santa Iria,
roçando-se e acariciando a escultura da santa, com as roupas
descompostas.
— Huarrh!
Ao
pecador apanhado não pareceram muito diferentes os tratos que o
padre lhe aplicou, dos habituais pesadelos pós-pecado. Mas, desta
vez, o verdugo brandia uma vara de marmeleiro e envergava batina.
Durante uma semana mal conseguiu conciliar o sono, com as dores que o
percorriam. Curiosamente, parecia que os açoites tinham afastado os
pesadelos. Durante meses, o pecador não se atreveu a pensar em
santas, de modo carnal. Até o padre começou a pensar que talvez o
corretivo tivesse sido remédio santo. Mas o mafarrico está sempre à
espreita. Só ele terá congeminado um plano tão malévolo:
conseguiu que este eficaz padre fosse deslocado para a igreja de uma
das freguesias de Alcochete, a freguesia deste que tal vos conta. E
terá incutido na ideia do padre de que era melhor levar aquele
problemático sacristão, então com 20 anos, do que deixá-lo ao
cuidado incerto de um incerto substituto. Quando São Batráquio viu
o interior da nova igreja e as formosas santas que ocupavam os
altares, temeu pela tentação. Santa Teresinha pareceu-lhe a mais
sensual. De olhos ingénuos, não era uma santa de madeira pintada
como as que conhecia — um manto branco cobria o burel que lhe
vestia o corpo, sob o qual apareciam dois pezinhos descalços...
— Huorrh!
O
diabo que nele habitava sabia
que a partir daquele momento o trajeto de pecado do nóvel sacristão
estava traçado. Era uma questão de tempo e oportunidade. E ela
chegou tão cedo quanto esperava. Foi no dia de Páscoa. Padre e
sacristão percorreram toda a freguesia, casa por casa, a dar o
Senhor a beijar. Depois das maratonas de confissões próprias da
época, aquela maratona de sobe e desce escadas deixaram o clérigo
de rastos. Percebia-se que iria tombar na cama exausto. São
Batráquio manteve-se acordado no escuro do seu quarto, como presa
encurralada. Pelas três da manhã, decidiu-se. Abriu a porta em
silêncio e deixou-se conduzir pelas sombras das ruas desertas, a
caminho da igreja. Ao entrar, sussurrou:
— Huorrh!
Fechou
tudo, deixou só a lampadinha do
Santíssimo,
para conferir um certo mistério exaltante, tapou com um pano negro
os rostos das outras figuras sagradas, Sagrado Coração de Jesus
incluído, para não sentir os seus olhares nas costas, e trepou para
o altar onde Santa Teresinha parecia esperá-lo.
— Huorrh!
Como
seria acariciar aquelas vestes? Sentiria logo as formas que se
escondiam no interior? O coração batia-lhe. Seria capaz de meter a
mão por dentro do hábito? A excitação emocionava-o.
— Huorrh!
Acariciou
a face sedosa da imagem. Abriu-lhe o manto, contemplando a graciosidade
austera do hábito. A mão hesitou em tocar
a
sua superfície. Era denso e rústico. Percorreu-o,
tentando encontrar as formas do corpo da santa francesa. Avançou
mais e mais, mas os seus dedos não encontravam qualquer resistência.
Num desvario aterrado, agarrou
o hábito com ambas as mãos,
em vão. Finalmente, em urgência, abaixou-se
e levantou-o por inteiro.
— Huorrh!
Manteve-se
por muitos segundos, boquiaberto, sem atinar no sentido do que via: a
santa era um cabide só com pés e cabeça, em que estavam
dependurados o manto e o hábito. Apenas. Não havia corpo algum.
Apenas um espaço vazio por baixo do hábito. Em vez da sensualidade
esperada, aquela estrutura transmitia escárnio. Zombaria. Imaginou
quanto terá rido o sádico santeiro, ao fazer aquela artimanha. Em
que ele tinha caído.
— Huooooorrh!
— berrou.
Enlouquecido,
começou a pontapear todo aquele embuste. Saltou para o chão,
arrancou as toalhas dos altares, derrubou lampadários e tocheiros,
partiu quanto pôde. Subiu à torre sineira e tocou a rebate.
Apareceu muito povo e uma ambulância acabou por levar o tresloucado.
Quando
teve alta, São Batráquio não voltou para nenhuma das suas igrejas.
Caminhou sem destino e foi assentar-se num lameiro perto da foz do
Sorraia, na freguesia de Póvoa de Santa Clara. Aí passou a
alimentar-se de moscas, imitando as rãs. De vez em quando, oferecia
punhados de moscas aos pescadores que por ali passavam. Foram eles que lhe criaram a fama de santo. As moscas que ele lhes oferecia eram um isco milagroso na pesca. E foram eles que lhe deram o nome. Na
verdade, São Batráquio fora batizado como Eustáquio, mas a parcial
semelhança fónica, os sons que emitia e a sua atividade de caça-moscas, como os batráquios, fizeram o resto.
Quando morreu de pneumonia, ergueram-lhe uma capelinha no meio do
lameiro, toda forrada por dentro de painéis de azulejos com cenas
da sua vida.
Fazem-lhe uma festa em maio, a que acorrem quase todos os habitantes
da Póvoa de São Batráquio — o novo nome da terra. A sua imagem,
que ostenta na mão o atributo de um pequeno mata-moscas, é levada
em andor em volta da capela. Dizem que ajuda nas artes da pesca e
cura resfriados.
Joaquim
Bispo
(Nos
500 anos da morte de Jheronymus
Bosch)
*
* *
Imagem:
Jheronymus
Bosch,
Tentações
de Santo Antão
(pormenor), 1505–1506.
Museu
Nacional de Arte
Antiga,
Lisboa.
*
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7 comentários:
Na Terra Deles teria a alcunha de Mosca Morta, e nunca seria santificado, visto ser uma terra de pedreiros livres e muita costura...
Mas, por ali, onde terão havido imensas sarilhadas, quer grandes quer pequenas, tudo foi possível...
Hoje a desolada foz do Sorraia em nada difere do Nisa e do Almansor.
Aperaltado.
Brilhante!!!
Parabéns Duarte Bispo.
É longa a lista de santos que nunca existiram, desde S. Jorge a S. Valentim. E alguns dos que existiram aproveitaram a existência de maneira bem mais pecaminosa. Ou bem mais ascética. O que parece ser decisivo é que a sua lenda ou fama se tenha tornado inspiradora.
Este pobre S. Batráquio nasceu quase exclusivamente da inspiração suscitada pela inacreditável pintura “Tentações de Santo Antão”, do não menos inacreditável Jerónimo Bosch. Não creio que se torne inspirador para ninguém. Nem na Terra Deles. :)
Obrigado, Carlos Alberto!
Narrativa deliciosa, realmente brilhante!
"Confio na Verdade (tenho aliás uma admiração extraordinária pelos cientistas). E não confio em Deus - uma invenção dos inteligentes para dominar os menos dotados." (J. Carranca Redondo). O homem do Licor Beirão). Não sei bem porquê, mas lembrei-me dele. Ou, daí talvez saiba... Gostei da narrativa... BOM ANO 2018.
Obrigado, Baltazar!
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