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segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Se

Apagada. A vela sobre o tijolo quebrado agora é cera derretida. De um branco sujo, gosmento. Janela afora, só um pouco de uma luz distante impede a escuridão de ser inteira. Mas não é claridade bastante que ela consiga enxergar da pouca altura do seu corpo que nem alcança um metro ainda. Os pés descalços caminham devagar até a porta sem tranca. No corredor comprido, o escuro é pior. Ela volta, com medo do bicho-papão. Com medo de tudo. Quer a mãe. A mãe que saiu no começo da noite. A mãe que só vai voltar amanhã. 

A mão miúda quase esmurra a madeira vagabunda da porta. A voz quase grita. Ela toda quase enfrenta o corredor escuro para procurar a escada. Ela quase. Mas se lembra da mãe dizendo: Aqui não pode gritar, não pode chorar. Quando a mamãe sair, tem que ficar quietinha. Senão vem um monte de homem mau pegar você. 
Não, ela não pode gritar.
Faz pouco tempo que elas moram ali. Que a mãe entrou escondida nesse prédio grande e escuro. E subiu muitas escadas sujas cheias de um cheiro ruim e de gente esquisita. 
Agora, nossa casa é aqui, disse. 
Faz pouco tempo que elas começaram a passar o dia na rua, pedindo dinheiro no sinal, comida nos restaurantes. Sem conseguir muita coisa. 
As pessoas não ajudam mais. Vou ter que me virar. Foi assim que a mãe falou. 
Agora, a mãe sai todas as noites. Sem ela. Vai se virar. E lá fora não tem ninguém para escutar o choro dela fungado de medo. Para ouvir ela dizer baixinho Mamãe, mamãe, volta mamãe! Para ela avisar que a vela apagou. Só os homens esquisitos que ficam nas escadas.
Se ela ficar quietinha no canto do colchão sem forro encostado na parede, se fechar os olhos para não ver o escuro, se for uma menina boa que não chora, se esquecer o estômago que é só falta, se não sentir o frio que ultrapassa o pano fino e furado enrolado no corpo, se tampar aquela boca de dentro que conta para a sua cabeça uma história que ela não quer ouvir: 

Cadê a mamãe? 

Mamãe foi trabalhar. 

Eu acho que ela foi embora. Deixou você sozinha.

Não foi, não! Ela me deixou com os anjinhos. Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador... Mamãe, mamãe, eu não sei o resto! Volta, mamãe! Vem me buscar! Cadê os anjinhos, mamãe?

Se ela conseguir sair dali sem passar pelos homens esquisitos na escada. Se ela conseguir fugir da história ruim que está ecoando dentro dela: A mamãe não vai voltar… A mamãe não vai voltar. Se ela conseguir subir no caixote que está bem embaixo da janela da cozinha. Se conseguir abrir a janela. Se conseguir subir no parapeito. Se conseguir voar. Como os anjinhos. 




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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


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