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sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Fatos e Boatos

Fato que Adalgisa andava apaixonada por Jadson Batista. Fato que a família não se agradava do namoro. Fato que Jadson Batista se emplastrava de brilhantina para esconder a carapinha rente e esbranquiçava a pele para entrar na arquibancada do Fluminense, seu time do coração. Boato que Jadson era um Zé Ninguém.

Fato que Jadson Batista acabara de receber o espadim de aspirante da Escola Naval. Boato que pretendia seguir carreira em Marinha e chegar ao almirantado. Fato que a autoconsciência de que sua cor e sua origem tinham tudo para lhe deixar a ver navios no meio do caminho.

Fato que Jadson Batista também andava apaixonado por Adalgisa. Boato que, apesar do desagrado, os pais de Adalgisa - ele escriturário do Banco do Brasil, ela do lar -  proibiam encontros do casal. Fato que eles até sucumbiram ao namorico, desde que Jadson Batista se apresentasse sempre com a farda da Escola Naval. Boato que não passavam do portão, onde alguma intimidade possível era ousada. Fato que desfilavam os dois pela rua, exibindo-se à vizinhança maledicente. Boato que janelas eram fechadas ao passar do casal atrevido improvável. Fato que Marechal, o vira-lata da família, ficava de sentinela no portão. Boato que rosnava ao menor sinal de mãos insidiosas mútuas.

Fato que o namoro esquentou, a ponto de Jadson Batista cogitar pedir a mão de Adalgisa em casamento numa cerimônia simples na casa da iminente noiva, diante da família contrariada. Boato que a mãe de Adalgisa dera um faniquito ao saber da intenção do ritual do noivado. Fato que acabou aceitando a ideia a contragosto, apenas com uma fisgadinha de decepção no peito.  Boato que o pai de Adalgisa expressou que não se sentiria à vontade diante dos pais de Jadson Batista, ele ferroviário, ela costureira no Engenho Velho. Fato que o casal trocou torcer o nariz por engolir sapo.

Boato que o rapaz seria um mestiço insolente a dar um golpe numa branquela bem-nascida. Fato que os pais de Jadson Batista se sacrificaram pela educação do filho único, a ponto de transformar o estudioso menino num dos mais graduados aspirantes da turma de 1951. Boato que se rebelava contra os que lhe chamavam de “pó de arroz”, “beiço gordo” e “telha brilhosa”. Fato que sempre fora um rapaz humilde, resignado e envergonhado de suas origens e seus antepassados.

Boato que os pais de Adalgisa deprimiram por desgosto da filha. Fato que se preocupavam com seu futuro.  Fato que a menina sempre fora uma estudante ordinária, uma normalista preguiçosa e não suportou madrugar num trem para dar aulas nos cafundós de Senador Camará, lugar estranho à sua casa de altos e baixos na Tijuca. Fato que detestava alunos. Boato que tinha sido exonerada pela Diretora da Escola. Fato que largara o magistério para se dedicar ao lar. Fato que restava aos pais rogar à Santo Antônio por um marido provedor que lhe mantivesse vida boa, confortável e estável.

Boato que o estrabismo de Adalgisa enxotava pretendentes. Fato que driblava a confiança dos pais nas domingueiras dançantes e se entregava a qualquer pé de valsa, quando impulsionava suas coxas ao ritmo do bolero aos entre pernas pulsantes dos rapazes. Boato que num muro escuro atrás do clube alguns parceiros de dança sentiam os glúteos rebolantes de Adalgisa, que recebia colossos rijos no único orifício que lhe permitia preservar virtude. Fato que a recorrência se dava era num beco igualmente escuro atrás do Grupo Escolar. Boato que os pais sabiam e faziam vista grossa. Fato que os ares angelicais de Adalgisa efluíam pureza e sonsice. Boato que os rapazes que conheciam seus glúteos rebolantes comentavam a façanha entre si. Fato que juraram segredo sob pena de nunca mais repetirem deliciosa transgressão.

Boato que Adalgisa era decantada à boca pequena como uma desmiolada desfrutável. Fato que depois de conhecer Jadson Batista desistira das domingueiras, dos boleros e do esfregar dos glúteos rebolantes nas pélvis dos pés de valsa, no beco escuro atrás do Grupo Escolar. Boato que, indignados, os saudosos do beco teriam dado com a língua nos dentes, a ponto de fazer Jadson Batista sabedor das travessuras de Adalgisa. Fato que temiam que o aspirante perdesse humildade e estribeiras, e lhes aplicasse uma sova de espadim e golpes de artes marciais aprendidas na Marinha.

Fato que Jadson Batista acreditava na pureza da amada. Boato que ela sonhava rebolar
seus glúteos rente às entrepernas de Jadson Batista. Fato que, por mais que lutasse contra vontades ardentes, não queria expor suas vergonhas antes da hora certa.

Fato que, diante do fiasco no magistério, os pais investiram na dona de casa prestimosa que Adalgisa poderia ser. Fato que a matricularam em cursos de bordados, crochê, corte, costura, pintura de louças, boas maneiras e culinária. Boato que seus fracassos se revelaram absolutos em todas as disciplinas. Fato que, pelo menos na cozinha, Adalgisa habilitou-se em sobremesas, doces, petiscos amanteigados e licores. Fato que para abrilhantar o dia do pedido de casamento resolveu a moça preparar um licor para servir ao iminente noivo e familiares, como prova de sua vocação para mulher prendada.

Boato que os pais a obrigaram a caprichar no licor, para embriagar o rapaz, a ponto de lhe fazer perder a compostura e estragar sua pretensão em desposar filha tão angelical. Fato que sugeriram à filha, que além do licor de teor alcoólico moderado, oferecesse café, limonada, biscoitinhos amendoados e petiscos.

Boato que estariam insones os pais com a possibilidade de desposar a filha com alguém que não frequentava seus sonhos. Fato que haviam se conformado e agradecido a Deus por um oficial de Marinha ter se interessado pela filha de poucos recursos do intelecto, em vias ter seu barco encalhado pelo destino.

Fato que o licor demoraria 10 dias para ficar no ponto. Boato que havia pressa para o momento solene. Fato que Adalgisa colheu a tempo jabuticabas no quintal e as colocou num pote coberto por aguardente. Boato que, dia seguinte, a mistura tinha se transformado num delírio licoroso, daqueles que prendem casais de maneira afrodisíaca, capaz de provocar calores nas intimidades de ambos e ímpetos de se imiscuírem num bolero ritmado intenso e infinito. Fato que dez dias depois, aí sim, a poção licorosa ganhou a propriedade do desejo, confirmado pelas sucessivas colheradas que
Adalgisa enfiava no pote e as levava aos lábios de olhos fechados, sem que não sentisse uma queimação igualmente licorosa que lhe encharcava a calçola. Boato que tenha se deixado levar por dedos inquietos, a ponto de urrar e gemer impudicícias, cujos crescentes áis, áis, áis profundos tenham transposto o muro do quintal da casa ao lado, despertando horrores e inveja na vizinha que esticava lençóis no varal.

Fato que a poucas horas da cerimônia, numa tarde fresca de um sábado, Adalgisa provou o licor e voltou a sentir a queimação subindo pelas anáguas da saia rodada. Boato que tenha recorrido aos dedos salientes para aplacar o fogo e produzir gemidos notáveis à vizinhança.

Fato que à chegada de Jadson Batista e dos pais, o casal anfitrião se portou com protocolar gentileza e encaminhou as visitas à sala de estar, onde um console estilo Luís XV, coberto por um caminho de linho branco e bordados, exibia licoreira, bule, jarro de refresco, cálices, xícaras, copos e pequenas baixelas de biscoitinhos amanteigados de amêndoa e folheados de parmezon.  Boato que a mãe de Adalgisa fitara os convidados da cabeça aos pés, sem esboçar sorrisos ou feições de simpatia, certa
de que oferecia pérolas aos porcos.

Fato que depois das lengalengas iniciais, Jadson Batista proferiu o esperado pedido olhos nos olhos do pai da noiva iminente. Boato que Adalgisa tenha se antecipado ao “sim” do pai e atirado a recém pedida mão entre as pernas de Jadson Batista, quando, movida pela embriaguez licorosa e o desejo despudorado, proferiu um “aqui está a minha mão no nosso espadim, meu amor”.

Fato que o resignado pai da noiva não titubeou e após a afirmação solene sugeriu à filha que servisse o licor. Boato que Adalgisa sentiu sua recôndita caverna em brasa e passeou a língua entre os lábios, ora de olhos fechados, ora de olhos abertos, contemplando sôfrega o homem que ali lhe devolvia o olhar como se prometesse a lua, as estrelas, o diabo.

Fato que, licor servido, os convidados ergueram cálices. Boato que o pai de Adalgisa saudara o licor de jabuticaba como néctar da “fruta negra, cor dos braços que ajudaram a construir o Brasil e que agora até guardiões de nossos mares já são, quem diria? ” Boato que os convidados se indignaram com o sarcasmo e deixaram a casa bufando, espatifando cálices e bibelôs.  Fato que os quatro pais e os noivos brindaram à nova família que ali nascia.

Boato que a data do casamento fora adiantada. Fato que a cerimônia foi povoada de elegâncias e emoções. Boato que a mãe de Adalgisa tenha se debulhado em lágrimas de tristeza. Fato que, se chorou, foi para demonstrar alegria. Boato que tenha levado um beliscão do marido na beira do altar, exigindo-lhe modos de mãe de noiva diante dos convidados.

Fato que a saída dos noivos se deu por um túnel formado de espadas empunhadas por oficiais de Marinha engalanados. Boato que os pés de valsa, saudosos do beco interrompido, ao invés de atirarem arroz aos nubentes, jogaram punhados de feijão preto no rosto do agora marido, que os cuspiu de volta aos agressores, desenbanhando o espadim e iniciando o bafafá na porta da igreja. Boato que a turma atrevida fugiu pela rua aos gritos de: “pó de arroz! ”, “beiço gordo! ” e “telha brilhosa! ”.

Fato que o casal entrou num Cadillac amarelo enlaçado de fitas rosas, em cujo rabo de peixe foram amarradas diversas latas vazias de Toddy e banha de porco.  Boato que Adalgisa segurava o espadim de Jadson como um troféu. Fato que lenços acenavam e mais arroz eram atirados como água  santa
a abençoar os pombinhos.

Boato que seis meses depois nasceu-lhes um menino. Fato que foram pais de Jadinho. Boato que
se maldizia o tempo da gravidez. Fato que entre talcos, alfinetes de fralda e cueiros, havia potes de brilhantina e que na cabeceira do casal nunca faltava licor de jabuticaba.

Fato que os quatro avós exibiam o neto orgulhosos pela vizinhança e em perfeita harmonia.
Boato que passavam pó de arroz nas bochechas do menino antes do passeio. Fato que Marechal
teria surtos de ciúme, mordendo quem se atrevesse fazer festinha ao pequeno.

Assim foi contado um recorte da história de Adalgisa e Jadson Batista. Fato que construído por fatos que viraram boatos e boatos que viraram fatos, aos quereres de quem conta e de quem lê.
O resto é boato. Ou fato.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


5 comentários:

Puro deleite. Melhor que doce de leite. Doce deleite. Zé Guilherme, o Zé das Letras é o cara.

Formidável texto aliás como é do feitio de Zé Gui Vereza!

Forma inesperada e criativa. :) Muito interessante!

Entre fatos e boatos os patriarcas criaram leis, regras e normas de boa conduta, porque consta que seus personagens burlaram as regras, boato ou fato que mesmo com castigos cruéis e prêmios injustos a vida vai se fazendo. Boato ou fato o mantra preferido do Temer para alcançar benesses: "é dando que se recebe" sabe-se que a história deve ser escrita, através de fatos e não de boatos. Mas o que prende e motiva são os boatos. Gostei. Parabéns! José Guilherme Veredas, nos traga mais textos assim: verdadeiro licor de jabuticaba.

Quanta engenhosidade e criatividade! Adorei!

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