Amaltescher é uma colónia penal alucinante — sei que dificilmente me vão entender. Na
altura, eu pertencia à célula de Lisbuhan dos Albertianos — um
movimento que tinha como referência os ensinamentos teóricos de
Leon Battista Alberti e propugnava uma imaginária com a excelência
representacional dos chamados pintores do século XV da era antiga.
Éramos quase todos ex-estudantes de arquitetura que, por uma razão
ou outra, nos tínhamos tornado representadores. «Com efeito, foi do
pintor que o arquiteto tomou as arquitraves, os capitéis, as colunas
e tudo o que faz o mérito dos edifícios» — argumentávamos a
quem manifestasse estranheza pela opção que tomáramos. Usávamos
quase sempre tecnologia eletrónica, mas, às vezes, preferíamos os
métodos e os suportes analógicos, como adesão superlativa às
práticas obsoletas dos criadores de imagens de há oitocentos anos,
como Piero della Francesca ou Durer. A esta veneração interpúnhamos
o filtro da naturalidade. Rejeitávamos as artificialidades, ainda
que perspeticamente corretas, como os trompe l’oeil, mas
abominávamos especialmente tudo o que indiciasse intenções de
manipulação do espírito, como as deformações de El Greco,
evidentes, ou as de Michelangelo, subtis.
Era
esta recusa do artificialismo que nos levava a abdicar das
representações holográficas, apesar da sua popularidade e da
facilidade de criação que os equipamentos de última geração
proporcionavam. Apenas a representação a duas dimensões
perspeticamente inatacável, composicionalmente deleitosa e de
matização venusta era o desafio que sempre procurávamos
ultrapassar. E mensalmente fazíamos o nosso próprio certame
expositivo — uma fila de ecrãs a todo o comprimento parietal de
uma ala no centro discente, matizado com um ou outro suporte arcaico.
Era a nossa vaidade e a nossa coragem. Percorríamos a exposição
vezes sem conta em pequenos grupos a admirar e a criticar o que
víamos. Os aspetos que nos mereciam apreço eram invariavelmente
brindados com uma citação do De pictura, de Alberti, que
quase todos sabíamos de cor: «O maior trabalho do pintor não é
fazer um colosso, mas uma história.»; «Não vejo caminho mais
seguro do que observar a Natureza.» Qualquer desatenção
perspética, qualquer deformação ou incoerência detetada, era
apontada de braço estendido e alvo de sarcasmos ruidosos, evocando
aos gritos a norma hereticamente transgredida: «Esperamos que uma
pintura pareça em relevo e que ela se assemelhe o mais possível aos
corpos reais»; «Numa história, é preciso que todos os corpos se
harmonizem pela estatura e pela função.» Quando o caso era grave,
chegava-se frequentemente à execução sumária da obra e até a
algumas vergastadas decididas pelo Coletivo Albertiano e aplicadas
pelo Veteranus Albertianorum.
Só
me alonguei nesta explicação para que percebam o contexto por
detrás do que aconteceu e me deem razão no que fiz. Nessa noite
tinha ido alimentar-me com dois colegas a um fornecedor alimentar,
numa zona fora das nossas rotas habituais. A certa altura reparámos
que havia umas quantas pinturas analógicas nas paredes, supostamente
para as adornar. Levantei-me e fiz o giro de análise. O que vi não
podia deixar-me mais irritado: eram umas pinturazinhas a tinta
biótica, representando edifícios arcaicos das zonas reservadas, até
com um apreciável tratamento lumino-cromático, mas… O ignorante
que produzira aquilo nunca tinha ouvido falar em ponto de fuga
— o rudimento dos rudimentos perspéticos. As linhas das cimalhas
apontavam para uma zona do céu e as linhas dos lintéis das janelas
e das portas apontavam para uma zona do piso a meio da rua. Chamei os
meus colegas e, com a constatação daquela aberração
representacional, começámos a lançar citações de Alberti:
«Imaginar sempre uma linha transversal cortada por uma linha
perpendicular, a fim de determinar na pintura uma posição fixa do
ponto de vista.» A ira crescia dentro de nós. «Para um corpo
retangular feito de ângulos retos, não se podem ver, com uma
olhada, mais do que duas superfícies contíguas tocando o solo.» No
auge da exaltação, peguei no forco da pasta proteica e desatei a
esburacar aquelas indignidades. Logo um dos alimentários, um velho
enrugado de cabelo pintado — que eu soube mais tarde que era o
executante responsável — correu para mim, a tentar segurar-me os
braços. Percebia-se que procurava defender aquela imundície. Não
pensei ou talvez tenha pensado no que havia a fazer. Espetei-lhe o
forco com força na lateral do pescoço. O que se seguiu nublou-se na
minha memória, mas sei que senti uma grande serenidade, como quando
se faz o que se espera de nós.
O
processo judicial foi rápido e resultou num veredito cruel:
ostracismo em Amalteia. O juiz devia ser um pós-picassiano: não
teve em conta a atenuante de eu ter livrado a sociedade daquelas
enormidades. Aliás, nem sequer proibiu o velho — que sobreviveu — de
continuar a pintar. Tentou ainda dissolver a comunidade albertiana,
mas isso não conseguiu. A ideia que a animava era mais intensa e
íntima que a mera brandura conjuntural. Sei que o grupo continua a
reunir-se, a espalhar os ensinamentos albertianos e a aprofundar a
ligação entre os membros. Como tenho saudades do grupo e desses
tempos! A vida em Amalteia era de uma crueldade sem nome, sobretudo
para um homem com a minha preparação mental.
Amalteia
ou Júpiter V é um dos satélites mais próximos de Júpiter.
Minúsculo, é desde há uns quarenta anos usado como colónia de
reeducação. Uma da dezena fora do planeta-mãe. O juiz não podia
ter escolhido mais “acertadamente” o local de cumprimento da
sanção. Claro que foi devido ao parecer do Conselho Normalizador
que estudou o meu caso. Para me fazer sofrer. Tendo em conta o meu
percurso de educação e de vida, as minhas escolhas, o meu
pensamento, o que sou. Aquele mundo não fazia sentido. Depois de lá
chegar, percebi muito bem por que há quem lhe chame Amaltescher, em
referência ao alucinado criador de representações absurdas,
irrealidades em imagem — Escher.
Com
uma gravidade extremamente baixa, é um misto de anacronismos
anatómicos, paradoxos geométricos e sobrepopulação. Tudo embebido
num éter transparente, viscoso mas respirável, que deforma a
perceção das formas. A fauna é variada, mas infinitamente
metamorfoseável, quase fluida, resultado de evolução em condições
de subgravidade. Como se percebe, é um mundo avesso a tudo em que
acredito — rigidez, precisão, previsibilidade —, pelo que me era
extremamente penoso viver ali. Era como se aquele mundo me estivesse
continuamente a desmentir, a agredir, a humilhar. Nas primeiras
semanas, eu e o grupo que chegou comigo, fomos obrigados a caminhar
insensatamente numa espécie de sem-fins, para nos adaptarmos às
condições singulares de gravidade e ilusão ótica. Durante horas
incontáveis descíamos escadarias, sempre a descer, sempre a descer,
mas não chegávamos a pisos inferiores — mantínhamo-nos no mesmo
nível do edifício. Cruzavam-se connosco reeducandos de um grupo
mais avançado, que subiam as mesmas escadas, interminavelmente. Mais
tarde, passámos para um “nível” mais difícil: eram torres,
edifícios, estruturas “impossíveis”, em que colunas da frontal
do edifício sustentavam as traseiras do piso acima; em que cúpulas,
a um tempo, eram abóbadas depois; em que escadas a ligar andares
baixos e altos pareciam poder ser percorridas quer na sua parte de
“gravidade normal”, como de “gravidade invertida” ou
“lateralizada”, isto é, havia a ilusão de se poder caminhar
tanto pelas paredes como pelos tetos.
Imaginem
o que isso fazia à minha sanidade mental. Chamarem-lhe “reeducação”
é de uma maldade obscena. Apetecia-me gritar: «Está bem, já
percebi, estúpidos pós-naturalistas, já vi as vossas armadilhas
surrealistas, mas não pensem que alteram a minha maneira de pensar.
Na minha Terra é o rigor albertiano que explica a realidade. Isso é
o que tenho de mais íntimo, de mais pessoal. Não se pode converter
alguém que não queira. As inquisições descobriram-no pelo
cansaço. Podem continuar com os paradoxos, que eu não abdicarei da
minha certeza!»
Mais
tarde passei para o “convívio” com outros seres. Chamar-lhes
seres é arrojado. Pareciam-me mais materializações ilusórias de
formas de seres do meu planeta, como se aquele satélite captasse o
meu pensamento, o interpretasse e o representasse. De maneira
totalmente “herética”, para usar a minha tão cara terminologia
albertiana. Um sofrimento intelectual permanente. Uma tortura. Uma
impiedade. Cruzavam-se uns com os outros num trânsito compacto e
inextricável. Continuamente alteravam as formas de modo a
cruzarem-se sem se tocar. Os seres que passavam como um grupo de
tartarugas, mais à frente já eram lagartos e depois abelhas,
borboletas, aves, peixes. Em sentido contrário deslizavam cavalos,
aves, peixes, formigas. Mas nas transições passavam por formas
desconhecidas para mim, embora me fizessem lembrar formas da Terra. A
única regra parecia ser a de evitar espaços vazios. Alguma
diferenciação de cor era o fugaz alívio percetivo, ao permitir
distinguir a demarcação entre seres.
Descobri
a vulnerabilidade do sistema, por acaso. Todas aquelas formas eram
bastante paradoxais e incongruentes, mas eram neutras, inócuas,
quase decorativas. Discorrendo, pensei que o tormento de lhes estar
exposto só era penoso intelectualmente. Bem pior seria se, além de
aberrantes, aquelas formas fossem assustadoras, como as de Bosch.
Automaticamente, visualizei um pormenor de uma pintura dele: um homem
com uma cobra enrolada às pernas a ser engolido por um enorme sapo
com botas bicudas. A este pensamento inquietado, uma forte flutuação
do fluido imersor transmitiu-se às formas imediatamente. Os
peixinhos a metamorfosearem-se em aves mudaram para peixes
monstruosos, de bocarras assustadoras cheias de dentes, em vias de
devorar pássaros de aspeto jurássico; cavalos não apenas
deformados ganharam desfigurações doentias, tumores e pústulas,
enquanto escaravelhos repugnantes lhes devoravam o pus. De repente,
todo o espaço que me circundava era uma representação alucinante e
amedrontadora das Tentações de Santo Antão.
Suspeitando
do que acontecera, rapidamente me controlei. Fora muito evidente que
a perturbação se devera à influência do meu pensamento. Outras
experiências com evocações de obras de De Chirico e Dali
convenceram-me disso. Mais tarde, percebi que a chave não era apenas
a evocação, mas alguma perturbação de medo ou inquietação, no
meu espírito. O que não acontecia com outras emoções. O que havia
a fazer? Como poderia aproveitar aquela singularidade ambiental em
meu proveito? Talvez… A ideia fulgurou no meu espírito: treinar-me
para sentir apreensão, receio, medo, mas por imagens que me
agradassem.
Pensam
que é fácil? Havia que evocar imagens como A Virgem dos
rochedos, sugestionar-me para sentir medo delas e, quando o
fluido imersor gerasse o universo sereno e deleitoso da imagem,
conseguir manter um sentimento de medo, enquanto tentava fruir aquela
paz. A ambivalência de sentimentos necessária tornava a experiência
extenuante, devido à concentração exigida. A princípio, o
fingimento não resultou, mas depois tornei-me eficaz a interiorizar
medo no meu espírito. Quando o consegui, pude sentir a harmonia, o
apaziguamento, em ambientes de Piero della Francesca ou de Da Vinci.
E de vez em quando, permitia-me uma incursão em Botticelli. Mas era
de mais. O medo construído começava a misturar-se com alguma
aversão verdadeira. Então regressava a Ticiano, a Giorgione.
Parecia que tinha conseguido escapar dos paradoxos e das aberrações.
Parecia que conseguira burlar o sistema. Nada de mais errado.
Muito
tempo depois, apercebi-me da armadilha. Cada vez era mais fácil
recear as imagens de que gostava. O fingido ia passando a sentido. A
certa altura, já sentia medo genuíno até da placidez de Bellini. E
atrás da emoção incómoda de medo vinham sentimentos de desagrado,
de asco, de rejeição. Sofria muito. Evocar uma imagem, mesmo a mais
deleitosa, era equivalente a experimentar emoções de náusea e
ódio. Paradoxo puro. Não tinha descanso. Não tinha para onde
fugir. Nem daquele mundo nem de mim. Estava desesperado.
Certo dia, recebi uma ordem de transferência. Não sei por que motivo, tinham resolvido comutar-me a
reeducação em Amalteia para guarda no Museu do Renascimento em
Lisbuhan. Conclusões e decisões do Conselho Normalizador... Não
sei se tenho razões para me alegrar. Deambulando pelas galerias
repletas de obras de arte, tenho um só truque; não para burlar o
sistema, mas para sobreviver: limito-me a caminhar de olhos no chão,
para não vislumbrar sequer as obras expostas. Não posso ver, não
posso espreitar, não posso permitir que o meu olhar caia sobre
alguma. Não posso sequer imaginá-las. Tento manter vazio o
espírito, sempre ameaçado pelos terrores e os paradoxos imagéticos
de Amaltescher. Assim sobrevivo.
Joaquim
Bispo
*
* *
Imagem:
M. C. Escher, Relatividade,
1953.
*
* *
4 comentários:
Meu caro, texto muito difícil apesar da 4ª classe da Dª. Amália Rufino. Vou tomar "Priberan"...
Abraço.
"manter vazio o espírito" é regressar à Origem, o ter percorrido o Caminho à Iluminação (Zen - Satori) de onde afinal pelo que se diz nunca saímos... Genial!
Eh, eh!
Acho que também tive essa professora.
Abraço!
Obrigado, anónimo!
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