A morte, essa curiosidade. Que lambe devagar como amante tímido, como bicho de rua. Essa vontade de rostos que só a saudade traça. O medo nervoso das doenças ruins, dos acidentes ruins, da velhice ruim sendo ofuscado por uma euforia que se apresenta em convite. Um relembrar de fatos bobos, tristes, bons. A mãe das fotografias velhas, com roupas estranhas (tudo é estranho quando se é passado). O pai de uma tristeza encolhida, disfarçada, das que burlam o faro dos que pressentem, o dó dos que percebem. Um irmão mais novo, um gato escaminha, um avô caduco, uma amiga de infância, um homem bom, uma mulher desperdiçada.
Tanta gente ida. A balança em desnível frenético. Mais um corpo, mais um corpo, mais um corpo, mais um copo. Cheio de aguardente e soluços. Despedidas. Abraços, palavras, terços recitados para a audiência ávida por ritos, para a plateia de olhos sujos, de inveja funda, de pouco sentimento. A amargura cavando um oco nas entranhas. Os dedos tesos amassando a fronha. O choro seco de quem aprendeu a se aguar só por dentro.
A morte, esse lugar sem instruções. Onde estão as criaturas do meu afeto. A vida, esta passagem estreita, autofágica. Coleção de ausências. Eu, quarto semiesvaziado. Travando na garganta as faltas. Esfregando as carnes sem calor. Absorvendo o derredor desabitado que confunde e desampara. E a solidão desaforada que insinua crenças em visões de eternidade.
Por hoje, vou procurar moedas. Limpar, polir. Que a paga de Caronte precisa estar sempre pronta. Para o dia que não sei.
2 comentários:
ai Cinthia que vc coloca o dedo tão atarrachado que quase se morre :)
Obrigada, sempre, minha amiga! ❤️
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