Durante quatro ou cinco anos, logo depois de formada,
lecionei Língua Portuguesa na rede pública de ensino do DF. Dei aulas de
literatura, interpretação de texto, redação e gramática — tudo junto no
currículo, teoria e prática — para alunos do Ensino Fundamental e do Ensino
Médio (que naquele tempo ainda se chamavam Primeiro e Segundo Graus), em escolas
das queridas Taguaiorque e Ceilândia, metrópoles do Quadradinho.
Ainda me recordo com carinho de alguns dos meus meninos.
Tenho até hoje guardados, num baú da saudade e da poeira, alguns bilhetinhos e
redações que eles fizeram para mim, a meu pedido ou espontaneamente, inclusive
homenagens pelo Dia do Professor e aniversário.
Foi um tempo difícil, de alergia respiratória e rouquidão
constantes para esta professora, mas de sensibilidade manifesta e de grande
aprendizado. Não se pode negar que a sala de aula é um laboratório incrível,
tanto do humano quanto do desumano. Convive-se com o afeto sincero e a atenção,
mas também com o desdém, a injustiça e a ineficácia.
Sempre me pareceu que o professor é um ser impotente em
potencial, que às vezes, muito de vez em quando, acaba conseguindo transformar,
incentivar, melhorar alguma criatura, alguma família. Interessante: cada classe se destaca
por algum tipo de teimosia. E há tanto as birras boas, produtivas,
engraçadinhas, encantadoras, quanto os caprichos que enervam e esterilizam. Há sempre alunos adoecendo e outros sarando os professores.
Mesmo não atuando mais como regente há tantos
anos, continuo interessada no papel de alunos e mestres. As memórias da
educação, minhas experiências no ensino não me largam. Fico imaginando como
estão hoje aquelas crianças e adolescentes com quem convivi de forma tão
próxima durante um bom tempo de nossas vidas. As criaturinhas tagarelas
encontraram um caminho próspero? Ou, bem ao contrário, tomaram o rumo fácil da
droga, do crime, da miséria? Experimentaram algum amor sincero? Constituíram
família? Fizeram amizade com a leitura? Ainda estudam? Escreveram ou ainda hão
de bordar suas próprias histórias? Vivenciaram algum sucesso nos estudos e na
profissão? Como têm se saído diante de qualquer simples vitória e diante de
toda crua derrota do dia a dia? Será que aqueles meninos e meninas de outrora estão
saudáveis? Felizes? Será que ainda estão vivos, apesar de toda a morte que lhes
tem sido oferecida amiúde?
Em especial, queria saber de um aluno lá da 6ª Série C da
Escola Classe 6 de Ceilândia que estudou comigo em 96 ou 97. Magro, alto,
bigodinho escuro, ele já era moço, e não mais criança. Sentava-se sempre na
última fileira, meio disfarçado sob o boné preto. Bi ou trirrepetente de ano.
Escrevia errado, como a maior parte dos colegas; mas era diferente, muito
diferente de todos os outros. Órfão de pai e mãe, mas a tia havia lhe
apresentado uma grande biblioteca. Tinha muitos livros em casa. Era culto o
menino. Aos 16 anos, já havia lido Machado de Assis e Augusto dos Anjos! Descria
de tudo, principalmente do amor e da felicidade. Pessimista, quase niilista, dava
um jeito próprio, em todas as redações, em todos os diálogos, de realçar o
poder da morte, da desesperança, do suicídio, do fim, da falta de jeito. Escrevia
histórias cabeludas com uma beleza desgraçada, de vocabulário rico e estilo
singular. Aquele garoto que teimava em se achar um nada significava tanto pra
mim! Eu elogiava sua inventividade e tentava reanimá-lo para o belo, mas ele preferia
(só sabia) retratar o negativo, o horror. Naquela época não se falava em
depressão; mas a melancolia profunda estava lá, ardendo em seus poemas e
narrações, em sua vida. Acho que seu prenome era Leonardo, mas não garanto.
Durante muito tempo acreditei naquele garoto, roguei sua
conversão. Pedi que ele não se calasse nunca e bradasse com palavra e corpo e
atitude. Ainda penso nele, mas não me lembro de seu rosto. Sei que era uma bela
e comovente face negra de abandono. Adoraria revê-lo ainda em vida para uma conversa cheia de riso e de lágrima. Iria com
prazer ao lançamento de seu primeiro futuro best-seller. Era um poeta excepcional,
e eu queria continuar ouvindo sua voz de lirismo sombrio que perturbava.
A vida é estranha. Apresenta muita presença para logo
transformar em ausência. O professor vai se despindo de si para carregar
estradas. Por preconceito, vaidade ou desejo de independência, diz que não pode
se ligar totalmente aos alunos, mas vive juntinho, sofrendo a história de cada
um deles. A cada ano, lamenta o conteúdo não cumprido, o corte abrupto, o ano
mal-acabado, seus Leonardos necessitados de salvação, a saudade sem chave. Entristece
por não acompanhar o porvir dos alunos. E é sempre a mesma dúvida que grita: Será
que eu compartilhei com eles o meu melhor? O meu mais ou menos? O meu pior? A
minha esperança neles resultou em quê?
Maria Amélia Elói
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