O cortejo fúnebre segue pela rua principal, criando uma paisagem anêmica. Carros, gente, bichos dando passagem ao morto em estranho respeito. No trajeto da procissão de rostos padronizados, casas pequenas mantêm portas e janelas fechadas. O fechamento é tradição. A intenção do gesto é homenagear o defunto com uma decência de passagem. Coisa antiga, de interior. Quem o morto foi não importa. Se foi ou não criatura de pecados. Ladrão, traidor, assassino, viciado. Na morte, tudo cessa. Porque a morte é paga que baste. Não, não importa mesmo quem foi o passante. Só às vezes. Quando tudo está errado. E a cor do caixão denuncia a trapaça nojenta. Como hoje em que a morte que segue na carreta é morte desonesta. Caixão branco. Meio metro de corpo. Nem metro inteiro. Até para Deus é covardia.
Na falação excitada dos jovens, muita raiva:
<Se Deus existisse, não matava criança.>
<Gente ruim Deus não leva.>
No silêncio dos mais velhos, alívio. Mais um que escapou de crescer. De ter as mãos engrossadas pelo plantio, de ver o café comido pela geada, de pedir empréstimo para pagar empréstimo, de olhar para o prato vazio, de agonizar pela fome. Crescer é desumano. Só gente jovem não sabe. Hoje é dia feliz, isso sim. Amém. Aleluia. É o que pensam os velhos calados.
Alguns passos e eu também sou procissão. Não importam a minha roupa colorida e as minhas mãos sem terço. Eles me aceitam. E me entregam murmúrios recorrentes. Desgraça... Desgraça... Desgraça... Desgraça... As mulheres mais velhas se benzem, exorcizando a palavra, ordenando silêncio. Falar desgraça atrai coisa ruim.
O bebê morreu dormindo. Não sofreu, diz alguém. Não, não sofreu. Deixou o sofrimento todo para a mãe. A mulher devastada que agora abraça o caixão. Caixão branco. De meio metro. Carregado pela carroça fúnebre. É tudo o que lhe sobra da parição tão amada. Na mão, o rosário não avança uma conta. Não há Maria, Senhora, Mãe que a conforte.
Eu tremo. Corpo inteiro. Tão forte que me pergunto se alguém percebe. Ou se alguém se importa. Apesar dos filhos que não gerei, tenho alguma coisa para entregar à mulher na carroça. Uma saudade de parir e de embalar aquilo que não tive, que não sei. Mas sinto. Um choro aguado que me devolve à oração da infância: A vós bradamos os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos gemendo e chorando neste vale de lágrimas.
Três da tarde. O corpinho lacrado pela madeira branca é engolido pela terra. O hiato nos murmúrios é de espanto. É de dor exausta. Ninguém se mexe. Ninguém vai embora.
Eu também ainda estou aqui. Estrangeira. Intrusa. Triste.
6 comentários:
Como sempre, um conto de Cinthia escrito pelo coração para os corações.
Muito obrigada, Zé Guilherme!
que mimos vc dá à gente e eu miserável nem os leio
Linguagem depurada, poética...Uma pérola.
Dor e mais dor dura da vida tal e qual é
Genial este texto
Dor e mais dor dura da vida tal e qual é
Genial este texto
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