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domingo, 16 de julho de 2017

Memória de uma bicicleta com caixa


Pai sentou ao meu lado no degrau da porta. Desajeitado no seu corpo de quem não se cabia. Sentou assim do nada. Olhos vermelhos, boca esturricada pelo sol e a falta de riso que escondia a ausência dos três dentes que foram caindo de podres. As veias saltadas no dorso das mãos, os cabelos desidratados e descoloridos como a palha de milho seca, o cheiro de suor e de sal no corpo. Cheiro de um pai que foi saudade a vida inteira.
O momento era de escolhas. Mas eu ainda era menina. Não sabia o que um momento de escolhas faz com o depois. Ocupada em olhar de esguelha o inédito daquele homem sentado ao meu alcance. O pai que sempre estava em algum mar bem longe, mesmo que as águas desse mar começassem no cais no fim da rua de areia. O pai que a madrugada me mostrava numa névoa de sono com cheiro de café ralo. 
No degrau, ele falou comigo. Trazendo pra bem perto a voz acabrunhada e abafada que antes eu só ouvia diluída. 
Tô indo. Mas volto.
E foi. Pra longe do mar. Brigado com o mar. Foi. Consertar panela, peneira, porta rangendo, janela emperrada. Montado numa bicicleta velha com uma caixa quadrada atarraxada no assento do carona. A bicicleta usada que foi presente do irmão que era garçom na capital. E a caixa que ele mesmo fez com a madeira que ganhou do moço pra quem mãe lavava roupa toda semana. Lá dentro, cabos usados de frigideiras, borrachas de vedação para panelas de pressão, instrumentos enferrujados, uma furadeira de segunda mão, óleo, cola, panos e uma trouxa amarrada, dentro da qual se espremiam um casaco puído, uma coberta pesada, uma muda de roupa e duas garrafadas — uma pra curar diarreia, outra pra curar dor de estômago. As economias todas enfiadas ali, se esbarrando e tilintando a cada buraco.
Funileiro. Era assim que queria ser chamado. Encomendou pra mim a pintura das letras. Pra mim. Naquele dia no degrau da porta. Não dava conta de ler nem de escrever. Mas queria atrair a freguesia. Comprou tinta vermelha. E eu pintei aquele nome esquisito. 
A cada vez que os anos me trazem à memória a imagem da bicicleta com a caixa, o erro de escrita me vem à mente: Funilero. Acho que pai nunca soube. E a clientela também não era lá essas coisas com as palavras. 
Mas pai nunca soube mesmo de muita coisa. Nem dos olhos da mãe que se perderam na estrada buscando seu pescador e funileiro. Nem do destino das três filhas — a que não quis ter filhos,  a que amaldiçoou os homens, a que se deitou com todos eles. Nem do que um momento de escolhas faz com o depois.


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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


6 comentários:

Muito obrigada, Cecília! Bjsss ❤️

Excelente, parabéns pelo retrato de muitos brasileiros!Me lembrou do meu avô, que era "ferrero"!Bjs

Caramba! Que texto ótimo! Cheguei a sentir a dor da saudade das minhas escolhas e do que elas fizeram com meu depois.

Obrigada, Marconi! Não sabia! Que legal!

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