Uma mulher de 40 anos se casa com um viúvo bem-sucedido, pai de um filho pré-adolescente,
ainda inconformado com a perda da mãe. No processo penoso e diplomático de conquista da
confiança e do possível amor do enteado, acontece o inusitado, o inexplicável, o incontrolável:
a mulher é surpreendida por uma ensandecida atração carnal pelo menino, que por sua vez, com
a sexualidade em riste, alimenta o tesão recíproco. Parece um caso escabroso de pedofilia e
perversão, daqueles em que a gente esbarra nos noticiários, e que quase sempre acabam em
escândalo,quando não em tragédias acachapantes. Mas tudo isso é fruto da imaginação de Mario
Vargas Llosa, expresso com requintes de poesia e erotismo no romance " Elogio da Madrasta."
Por que isso agora?
Porque não consigo pensar em outra coisa senão em histórias extraordinárias de amor e sexo,
conseqüência angustiante do inicio do meu processo criativo. É sempre assim. Começar a
escrever uma história é de dar frio na barriga e palpitações de tamborim. Enrolo o mais que
posso, chacoalho o mouse, passo um paninho na ameaçadora tela em branco, sopro farelinhos
entre as teclas, troco a fonte das letras, bato pernas pelo Google, opero manobras ridículas
para dar tempo ao tempo, até que uma ideia, uma mísera inspiração que seja, se aproxime e
se enrosque em mim.
Enquanto ela não vem, caio na armadilha das lembranças de tantas histórias entulhadas no
sótão do inconsciente. Elas me surgem, esfregando na minha cara inveja de seus férteis
criadores, na inocente e descabida pretensão de que eu poderia – ou gostaria – de ter sido
um deles.
E na sequência da madrasta tarada, aparece um Nelson Rodrigues decantando a desventura de
um homem que ao sair do trabalho, passava na casa da amante, onde se locupletava na cama e
na lauta mesa posta. Desconfiada, a mulher oficial resolve em silenciosa vingança preparar
supremas iguarias para o jantar tardio. Covarde, o sujeito jantava duas vezes. Uma rabada
antes e um bobó depois, macarronadas e seguidas bacalhoadas, estrogonofes e imediatos vatapás.
Tudo cabia no estômago enfastiado do infeliz, vítima de uma duplicidade amorosa que não
conseguia se desvencilhar. Não digo o final. Procurem “O homem que jantava duas vezes”, conto
da série “A vida como ela é”, obra tão contundente e humana quanto, por exemplo, uma história ácida de Rubem Fonseca, que me persegue em momentos de lacuna criativa. Trata-se de um jovem casal recém-casado, que vai em lua de mel para um acampamento nas margens de um rio no Colorado. Mesmo tendo vivido o sexo prévio, a lua de mel é um desastre. O rapaz perde
totalmente o desejo pela mulher, uma patricinha afetada, passa a agredi-la com o desprezo sexual
e se instala o tormento. A cada dia, não se reconhecem mais. O casamento mal começou e já vive a
iminência de um desastre, até que o rapaz vê a mulher saindo do sanitário rústico do acampamento
com um rolo de papel higiênico na mão. Sem que ela perceba, vai até lá e vê: uma formação cilíndrica semi submersa, portentosa, repugnante. E a partir da simbologia do extremo da intimidade, o desejo reacende. Transam a transa das transas sem parar, como humanos e animais que são.
Forte, esse Rubem Fonseca, não?
Mas não mais que Sófocles que escreve um Édipo que mata o pai e tem relações sexuais com a mãe, sem saber o quanto essa história daria pano para manga. Na esteira do mote, vem um filme com Marcello Mastroianni, que faz o papel de um homem que 20 anos depois volta a uma vila, para reviver um amor da sua adolescência. Claro que não encontra mais a mulher, mas para não perder
a viagem, tem um caso com uma ninfetíssima Natasha Kinski. E no auge dos orgasmos múltiplos, desconfia que é sua filha, fruto daquela tal paixão deixada para trás. Doideira.
Quer outra?
Maria Eduarda e Carlos Eduardo se apaixonam. Vivem um amor intenso, até que descobrem que
são irmãos, numa trama genial de Eça de Queirós.
Agora quem me aparece é Machado de Assis, com sua indecifrável dúvida sobre a fidelidade de Capitu, e logo depois, Jorge Amado me cutuca com a história de uma mulher mais feia que o diabo com dor de dente, que atraía os homens mais bonitos da cidade, fenômeno justificado pelo fato de a mulher possuir uma “vagina chupeta”, “em cujas profundezas havia um anjo a chupitar”.
Vale esclarecer que a primeira palavra da sutil descrição do autor não é vagina, mas aquela mesma,
de rima rica com chupeta e de despudorada sonoridade.
Coisas de Jorge Amado, o mesmo que presenteou o mundo com o caso da cozinheira que
prevaricava com o fantasma do primeiro marido.
E por aí vai meu pensamento, bloqueado pelos amantes de Verona, pelo fetiche da Belle de Jour,
pela comovente Madame Butterfly, pelo persistente amor dos tempos do cólera, pela impossibilidade
da paixão de um gorila por uma loura, pela felicidade engolida numa neblina de Casablanca.
Enredos e fábulas de amor e sexo me atropelam como um trem desembestado, mas idéia nova que é bom, nada.
Chego ao momento de entregar os pontos. Meu processo criativo não passou da primeira fase
– fracassei ao primeiro beijo - e me curvo diante do assalto de tanta ficção já escrita e bem escrita.
Sim, roubei histórias alheias para preencher esse espaço, para aplacar minha angústia.
Peço desculpas a quem me lê pela falta de imaginação, e aos citados pela usurpação.
O que me consola é que, se a inspiração me derrubou, pelo menos, acho que sugeri algumas
histórias formidáveis, que podem ser visitadas ou revisitadas, em livros, cinema, DVDs, TVs, internet, tanto faz.
O importante é que, assim como o amor, o sexo e os relacionamentos complexos e humanos,
as boas ideias ousadas e poderosas engrandecem a nossa alma.
terça-feira, 20 de junho de 2017
SIM, ROUBEI
por José Guilherme Vereza
2 Comentários
2 comentários:
Excelentes histórias, já roubadas em janeiro de 2016. ;)
Verdade, caro Joaquim. Sou reincidente. Roubei de mim mesmo a reflexão sobre histórias inesquecíveis. Só que neste ano e meio, muitos novos leitores não conheciam a prosa. E obrigado pela sua atenção cuidadosa. Grande abraço. ZéGui
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