As
mulheres da Paradanta são o amparo da casa. Robustas e determinadas, são por isso admiradas e protegidas pelas deusas primordiais. A sua
aldeia fica encravada entre montes atulhados de pinheiros nas faldas
da serra da Gardunha, onde só é possível cultivar estreitas leiras
junto ao pontos mais profundos dos vales. Por isso, sempre tiveram de
obter complemento económico fora da pequena agricultura de
subsistência. Às vezes, em atividades inesperadas e até longe da
sua terra. São vistas desde sempre a carregar pesos à cabeça. Em
grupo, em rancho. Decididas, caminhando e equilibrando os carregos, balançando as ancas cheias.
Como os deuses gostam de contemplar o seu caminhar! Talvez por isso
as tenham colocado ali, na Paradanta, para lhes fruírem a atividade,
em vez da rigidez de antanho.
Na
década de 40, era comum vê-las a carregar caldeiros cheios de
pedras com volfrâmio. O dinheiro do minério já lhes permitia
comprar alguma massa ou arroz na venda da aldeia. Todas se lembravam
e queriam afastar os tempos penosos da Guerra Civil de Espanha, com
racionamentos e contrabandos. Os homens manejavam as enxadas a
esburacar terrenos, e as picaretas a desfazer calhaus, um pouco por
todos os montes das redondezas, onde vissem ou suspeitassem encontrar
o apetecido minério negro e brilhante. Elas enchiam as vasilhas,
punham-nas à cabeça e pelo meio dos pinheiros, dos matos, das
pedras, por fim por veredas, carregavam-nas até pontos combinados,
onde as mulas podiam chegar. De etapa em etapa, o minério lá
acabava por chegar aos Aliados. E aos Nazis. O comércio não tem
ideologia. Umas atrás das outras, em filas espontâneas, tenteando o peso, abanando as
ancas, iam e vinham lançando um ou outro canto com temática
de igreja, mas reconforto pagão. Por vezes, Atena apiedava-se do
esforço brutal das suas amadas paradantenses e, disfarçada como uma
delas, ajudava-as, sem que elas percebessem. E afugentava algum
condutor de mulas que, fiado no ermo dos pinhais, se preparasse para
abusar de alguma delas.
Na
década de 50, com a II Guerra acabada, já ninguém queria saber do
volfrâmio. As mulheres da Paradanta voltaram à agricultura, ou
antes, ao trabalho
sazonal nos grandes terrenos planos a sul da serra, por conta de
proprietários ou rendeiros. Os homens iam para as grandes ceifas do
Alentejo, elas ficavam-se por zonas não tão distantes. Aí por
princípios da primavera, ora um ora outro agricultor aparecia na
terra depois da missa de domingo e propunha o trabalho. O acordo não
tinha nada que negociar: era um terço da produção para todas. Por
isso lhes chamavam “terceiras”. Às vezes, já apalavradas de
antemão, repetiam o lavrador de um ano para o outro. Constituído o
rancho, apresentavam-se ao trabalho depois das ceifas, por meados de
julho e mantinham-se até final de setembro. Regavam milheirais, melanciais e aboborais, colhiam a produção na altura certa, ajudavam a transportá-la para as tulhas ou para a eira, descamisavam as
maçarocas, malhavam-nas, limpavam o grão. O trabalho mais demorado era o da apanha do feijão frade, em setembro, feijoeiro a feijoeiro. Calcorreavam extensões enormes, dobradas, apanhando as vagens maduras para as cestas, que eram despejadas em panais, que eram atados em trouxas quando as pilhas transbordavam, que eram carregadas para o carro de vacas, que as levava para a eira. Vendo-as em tão grandes penares de labuta campestre, Deméter, disfarçada
como uma delas, imiscuía-se frequentemente no rancho, colhendo as
vagens agilmente, aliviando a dureza da lida. A mais nova estava
encarregue de, ao longo do dia de calor inclemente, ir buscar água a
alguma fonte ou mina, numa bilha à cabeça, e dessedentá-las.
Também era a aguadeira que ia adiantando os cozinhados de todas, em
panelinhas de ferro individuais. Muita solidariedade coletiva, muita
comunhão de quase tudo, mas mantinham áreas de reserva individual:
a comida, os homens e a religiosidade pessoal. Uma fogueira, uma
dúzia de panelinhas em redor, cozendo
batatas ou feijão. Com um naco de toucinho cozido ou um pedaço de
morcela, estava a ceia feita. Se houvesse lua e trabalho na eira, era
possível que Zeus, Dioniso ou outro deus igualmente lúbrico
incentivasse os cantares e as danças, disfarçado de ganhão ou
pastor. Sileno nunca perdia uma desfolhada. E um beijo por outro não
desonra ninguém. Iam à terra no sábado à tardinha e voltavam no
domingo à noite. Uma cesta à cabeça, umas atrás das outras.
Cantando, galhofando, calando. Como os deuses gostam de ver o balanço
das suas ancas!
Na
década de 60, os namorados foram combater para África, os maridos
foram trabalhar para França. Algumas foram com eles. A salto. Malas
à cabeça. As que ficaram na Paradanta amanharam-se como puderam.
Rezavam, teciam, cuidavam dos filhos, tratavam de uma horta, iam à
lenha. Traziam os molhos à cabeça. Os faunos dos pinhais gostavam
de as ver calcorrear veredas. Meneando as ancas. Mesmo com poucos
homens na terra, não deixaram morrer a romaria da Senhora da Orada.
No quarto domingo de maio, partiam ao princípio da manhã, com o
tabuleiro da merenda à cabeça, cantando glórias à Virgem.
Oscilando as ancas, aos poucos iam vencendo os vários quilómetros
que separavam a aldeia da capela, sempre a subir. Depois da missa,
derramavam-se pelas sombras, saboreando a merenda, rodeadas da
filharada e de uma ou outra deusa disfarçada de romeira e saudosa de
convívio humano. Pagas as promessas, feita a procissão, regressavam
à Paradanta, cantando modas menos religiosas que à ida.
Na
década de 70, acreditaram na mudança prometida. Ouviram os
militares, os políticos, fizeram reivindicações, conseguiram um
lavadouro público coberto. Com a vulgarização do gás e a chegada da eletricidade, deixaram de ir à lenha. Os incêndios sucederam-se
nos pinhais atulhados de mato. As fontes tornavam-se frequentemente
chafurdos de cinzas. As mulheres da Paradanta punham os cântaros à
cabeça e percorriam distâncias até alguma mina que
não fora atingida. Por veredas serpenteantes, uma após outra,
traziam para casa o líquido mais precioso. Como os deuses apreciam o
seu caminhar! Algumas convenceram os maridos a regressar, fizeram
reuniões, dançaram. Dioniso não deixava de aparecer, sempre que
havia folia. Finalmente, chegou a água canalizada e uma estrada de
alcatrão. Algumas famílias compraram carro. Ou motoreta.
Aos
poucos, as mulheres da Paradanta deixaram de calcorrear lonjuras
com pesos à cabeça. Os deuses ficaram melancólicos. Alguma graça
no mundo se perdera. Chegaram a pensar devolvê-las aonde tinham ido
buscá-las. Lá onde, rígidas e pétreas, eram o sustentáculo de arquitraves e platibandas clássicas. E a quem os mortais chamam cariátides. Além
disso, estavam a ficar cheiinhas e roliças. Felizmente, Hera, também
com um pouco de peso a mais, lançou a moda de andar a pé, para
emagrecer, e precisou de companhia. As veredas da Paradanta voltaram
a encher-se de mulheres que caminham. Embora sem pesos à cabeça.
Mas ainda com o tão admirável meneio de ancas. E os deuses voltaram
a ostentar um sorriso deleitado, no rosto divino.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Cariátides
[figuras femininas esculpidas servindo como suportes de arquitetura —
colunas ou pilares]
do templo Erecteion, Acrópole de Atenas, século V a.C.
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(Este conto integra a coletânea resultante do X Concurso Literário da
Cidade de Presidente Prudente,
Brasil, em 2016.)
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17 comentários:
Belo texto, bela história.
Obrigado, Zé Guilherme. Abraço!
... não vi no texto, mas "Terceiras", ... porque trabalhavam e o ganho era ao "terço", isto é, dois terços para o patrão e um terço para a trabalhadora, a terceira, normalmente em sementes, feijão pequeno e raramente milho.
Na "terra deles", também houve muitas terceiras, que se dividiam socialmente em dois grupos, as mais ricas iam para a mestra aprender costura e as menos afortunadas, iam para a curtinha, que tinha por feitor o Sr. António Damas, apanhar as ditas "bajinas"... não deve ser pronunciado com a pronúncia do norte.
Conto lindo Bich-up, com algumas verdades de outros tempos...
A,Silva
Belo retrato evolutivo das gentes dos teus lados.
Dizem-me que o meu comentário estará visível depois de aprovado. Dá ar daquela coisa da censura...
Obrigado pelo acrescento alcainense, Peralta. Também aí havia um divino balanço, quando se carregavam cântaras à cabeça, desde o Santo António…
Sim, o texto especifica: «O acordo não tinha nada que negociar: era um terço da produção para todas. Por isso lhes chamavam “terceiras”.
Abraço!
Nunca esperei ver esta formulação da alcunha Bishop, a qual derivou do sobrenome Bispo.
Obrigado, Aníbal. Nesta idade tem-se saudades de tudo.
Abraço!
Gente sofrida, gente invisível.
Abraço, Artur!
Nunca me apercebi de qualquer adiamento nos comentários, muito menos de censura. Deve ser um aviso tipo.
Podiam ser as "cariátides" das Donas ou Vale de Prazeres!mas essas tinham horizontes mais largos e o volfrâmio era mais escasso...Todavia o meneio das ancas era igualmente sublime, assim como o retrato fiel que nos dás das vicissitudes do povo sofrido,num belo e cativante estilo literário a que já nos acostumaste.
Bem hajas Joaquim
O seu conto é muito original. A "mistura mitológica" agradou-me muitíssimo. Parabéns! Isabel Gouveia
Um conto maravilhoso por um contador também maravilhoso!
Conheço a Paradanta,Não conheço as suas gentes,gostei do texto e do maneio das suas ancas.
Obrigado, “Anónimo” (JAL)!
Sim, esse meneio sublime é característico das mulheres que transportam pesos à cabeça, para manterem o equilíbrio da carga.
Se calhar, não havia volfrâmio lá pela Paradanta, mas havia por muitos outros sítios e o autor tem a sua liberdade ficcional, sobretudo num texto que não é texto histórico. Escolhi a Paradanta por ser uma das terras aonde o meu pai ia contratar “terceiras” para a exploração agrícola que tinha de renda, na zona da atual barragem da Marateca. Cheguei a apaixonar-me por uma do Ninho do Açor, tinha eu sete anos…
Abraço!
Obrigado, Isabel!
A mistura veio naturalmente da inspiração clássica inicial – as cariátides – e usou o estilo de intervenção mitológica da Ilíada.
Obrigado pela leitura, Maria Fernandes!
Obrigado, André. Abraço!
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