Vivemos numa época de relativa abundância, apesar das crises. De maior ou menor qualidade, quase toda a gente come a quantidade de comida que quer. Talvez como exorcismo de penúrias passadas, organizam-se almoçaradas e jantaradas por todos e mais um motivos. Em que frequentemente se exagera na ingestão, se desperdiça, se brinca com a comida.
A falta de contenção nos prazeres da mesa estende-se nas sociedades hedonistas ocidentais aos outros aspetos da vida, seja no sexo, no consumo, no lazer. Em algum momento depressivo da vida, quem nunca questionou o “para quê”, afinal, deste frenético desfrute? Na verdade, de vez em quando, tomamos conhecimento de alguém que parece gozar de um bem-estar invejável, que de repente deixa de ver sentido na vida que leva, deixa tudo para trás e envereda pelo isolamento e um quase ascetismo.
A
História das religiões está cheia de ascetas, jejuantes, eremitas
a alimentar-se de gafanhotos, procurando uma verdade essencial no
silêncio e na frugalidade. Alguns juntam-lhes a imobilidade e a
“ausência de si”, parecendo aproximar-se da vida vegetal,
atenta, no entanto aos processos de conhecimento transmentais.
Viver
em harmonia com o Mundo e com os outros sempre foi das grandes
aspirações do Homem. Muitos grandes homens se dedicaram a pensar a
vida, as suas harmonias e os seus contrassensos. A que iluminações
chegaram esses grandes contemplativos? Qual foi o seu percurso?
Escolhamos um dos mais conhecidos: Sidarta Gautama, o Buda.
Sidarta,
um príncipe indiano que viveu no século VI antes de Cristo, sempre
muito protegido pelo pai, viveu os doces prazeres da corte até muito
tarde, sem ter qualquer consciência dos dramas sociais que se
desenrolavam fora do palácio. Ao aventurar-se finalmente fora do
muro protetor, deparou-se com as cruéis realidades da velhice, da
doença e da morte, entre os seus míseros súbditos. Perturbado como
uma criança de poucos anos, quis entender por que existiam tantos
sofrimentos no mundo. Como um miúdo, ficou fascinado com a visão do
porte sereno e majestoso de um desses ascetas maltrapilhos que
vagueavam pelas aldeias mendigando algo para comer. Andava então
pelos 29 anos e tinha acabado de ser pai de Rahula, um menino, de uma
prima com quem tinha casado aos 19. Pouco depois, abandonou a mulher
e a criança e foi refugiar-se entre os ascetas de umas serras perto
de Rajgir.
Talvez
se tenha assustado por nunca ter conhecido algumas verdades
essenciais da vida. Terá sido a vontade de querer perceber o mundo
que o levou a deixar o palácio e a procurar mestres que o
esclarecessem, mas o facto foi coincidente com o nascimento do filho.
Podemos pensar que foi esse nascimento que determinou a rutura brutal
com a vida que Sidarta levava até aí.
Há
mulheres que renegam os filhos que parem, talvez pelas dores que
estes lhes provocaram para nascer; há homens que ficam aterrorizados
com o significado intrínseco do nascimento de uma vergôntea sua,
que, fatalmente, lhes surge como o seu substituto. Terá sido o que
sucedeu a Sidarta?
Qualquer
pessoa comum verá nesse abandono uma fuga, uma cobardia. Dirá que o
homem não suportou o peso das responsabilidades futuras, quer da
paternidade, quer da liderança de um reino. E que a culpa terá sido
do pai, que o manteve afastado das realidades da vida. Que deve ter
entrevisto na vida sem compromissos que procurou a solução para
fugir às pressões cada vez maiores que a sua vida de nobre
enfrentava.
Terá
atingido, pela meditação, os estádios do “domínio do nada” e
do “domínio além do pensamento”, mas manteve-se, ainda assim,
insatisfeito, pelo que rumou à floresta de Uruvela juntando-se aos
ascetas Sadus, mais radicais do que os seus companheiros anteriores.
Existia,
na Índia, a ideia enraizada de que, para se atingir o saber e o
poder sobre as realidades profundas da vida, havia que fazer jejuns,
vigílias e outras penitências e mortificações. Com cinco dos
novos companheiros jejuou e mortificou o corpo durante seis anos, até
que pressentiu que debilitar o organismo lhe diminuía a capacidade
de meditar, pelo que concluiu que não podia ser essa a via do
conhecimento, e quebrou o jejum, para grande repúdio dos
companheiros. Só mais tarde, quando ele lhes revelou as suas
iluminações, obtidas em estado de longa e solitária meditação, o
reconheceram como Buda, isto é, Desperto, e se tornaram seus
discípulos.
Que
verdades profundas eram essas, que ele atingiu pela meditação?
Coisas que nos parecem elementares, que a maioria das pessoas simples
usa com frequência, mas sem disciplina, que ele sistematizou em oito
princípios, a que chamou “Caminho Ariano dos Oito Passos”:
ideias, aspirações, linguagem, conduta, meio de vida, esforço,
atenção e meditação corretos, isto é, equilibrados. É também
chamado “Caminho do Meio”, no sentido de ponderado, sensato, “nem
8 nem 80”.
Cada
um destes passos foi objeto de esclarecedores desenvolvimentos,
sujeitos a um princípio geral de Impermanência: tudo é
impermanente; todas as coisas estão interligadas e interdependentes,
por isso mudam; nada permanece para sempre. Se as pessoas se apegarem
demais às coisas, vão sofrer com essa mudança. A causa do
sofrimento é o apego, seja a um objeto, a uma ideia, ou a uma
condição social. Libertando-se do apego, o ser humano alcança a
libertação que procura. Ou seja, nada de apego excessivo às coisas
do mundo, mas também nada de mortificações: vida atenta e contida
em todas as suas facetas. Podemos resumi-los assim:
Ideias
corretas — construir uma perceção de como o mundo funciona,
diminuindo a ignorância própria;
Aspirações
corretas — combater o apego, raiz de todo o sofrimento;
Linguagem
correta — evitar a mentira, as frivolidades, cultivar a forma
amigável, atenciosa e o silêncio;
Conduta
correta — não matar, não roubar, evitar relações licenciosas,
“servir” os outros;
Meio
de vida correto — escolher trabalhos e atividades que não
infrinjam estes preceitos budistas;
Esforço
correto — evitar pensamentos e estados de espírito destrutivos;
Atenção
correta — autocontemplação, entendida como meio de alcançar o
controlo da mente e do corpo;
Meditação
correta — procurar libertar-se das noções de tempo, espaço,
“mim” e “meu”.
Este
caminho de aperfeiçoamento pode ser entendido como uma espécie de
manual de autoajuda para que o ser humano, através de esforço e
método, alcance a iluminação nesta vida — um bem-estar
espiritual a que se chama Nirvana. Não é uma religião, nem Sidarta
— o primeiro Buda — dedicou grande atenção à religião. Talvez
por isso os Brâmanes não o vissem com bons olhos.
Também
a nossa sociedade ocidental não vê com bons olhos os meditativos,
os contemplativos, os sonhadores. Pensa que deve admirar os grandes
pensadores, se forem inventores ou reformadores sociais, mas sobretudo
sente que são tanto ou mais importantes os homens que não ficam
parados de olhos fechados e usam a vida em atividades úteis para
todos os semelhantes: os cuidadores, os artífices, os produtores,
com especial atenção para os que produzem os alimentos. Que sem
estes, o mundo estaria cheio de meditativos jejuantes a descobrir
verdades profundas da vida, com o estômago a roncar.
Lá
vem, por vezes, o dia em que reconhece que, sem grandes e mobilizadores
pensadores do íntimo, como Sidarta, os homens estariam condenados
a arrastar vidas sem aquela esperança de redenção que
possuir uma verdade fundamental confere.
Na
verdade, em todos os tempos, em todas as longitudes, cada ser humano tenta percorrer o caminho que escolheu, que
procurou, que encontrou, segundo a sua aspiração íntima, e procura
torná-lo útil, satisfatório, empolgante.
Os jejuns não são naturais, mas por algum motivo benéfico aparecem nos preceitos das religiões, que não só a mortificação. Há quem os tenha levado a extremos, há quem os remeta a ritual simbólico. Uma vez por mês, almoçar uma maçã a sós consigo e com a Natureza, talvez possa ser a experiência espiritual necessária
para reajustar ou mesmo reinicializar o trajeto decidido.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Representação de Buda em estilo Gandara [greco-budista], século
II–I a. C., Museu Nacional de Tóquio.
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2 comentários:
... combater o apego raiz de todo o sofrimento, "coisa" de que já ouvi falar.
Conheço um tipo, que gostava tanto da esposa, que acabou por se separar dela, dizendo-me - óh Peralta não quero que ela sofra, chore, quando um dia eu morrer...
Mas, bom, ainda melhor que bom, é ter a inesquecível lembrança de chorar, sofrer, resofrer, por quem se gosta e nos deixa.
É isso que me prende à terra, à minha horta, sem necessidade de ascetismos de mentes, nem sempre dementes, procurando nos seus imensos desertos de solidão, o que por vezes têm tão perto.
Uma horta: eis uma formidável ferramenta do Nirvana possível. Prazeres simples os da terra. E facilitadores de meditação.
Abraço!
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