Um segundo olhar. Mais do que isso até. É preciso muitos olhares para saber Helena. Para ultrapassar o exterior desfavorável e ir além dos cabelos lisos abaixo dos ombros, ralos, mal penteados. Além da pele manchada e seca, ferida por espinhas que não deveriam mais estar lá. E dos olhos miúdos, claros, assustados como os de um animal perseguido. E dos ombros abaixados como se sobre eles houvesse carga permanente.
É preciso furar a casca rude de Helena. Esquecer as distrações que a desmerecem. Distrações que poderiam definir outras mulheres, mas não ela. Helena não é superfície.
A voz baixa, quase um cochicho, nunca se altera. Mas é bom prestar atenção à sua boca. Pequenos repuxados no canto esquerdo alertam sobre seus humores. Quando surgem, são sinais de que ela vai travar com alguém, em algum lugar, a qualquer momento, uma batalha. Ou já está travando. E Helena não perde batalhas.
Faz anos que ela traz para mim, aqui no hospital, mulheres que tentam abortar sozinhas ou pelas mãos de fazedores de anjos inexperientes. Mulheres sem recurso, sem apoio, sem saída. Vítimas de um processo doloroso, sangrento, primitivo. E mortal. Traz também meninas engravidadas por pais, tios, irmãos. Estupradas por vários silêncios. Ou seduzidas por meninos tão bobos quanto elas. E me convence a atendê-las sob argumentos que não aceitam réplica. Sem registros médicos ou ocorrências policiais.
Sim, eu sei. Mas este não é um relato sobre ética, nem sobre leis, nem sobre crenças, nem sobre escolhas. Nem sobre mim. Esta história é sobre Helena.
Helena. De mãos pequenas e grossas. Que acompanha mulheres e meninas. Que abraça cada uma delas no choro de uma maternidade solitária ou nas dores de um aborto. Que as leva embora assim que podem ir. Amparadas. Afastadas dos companheiros bêbados e das mães apocalípticas que discursam sobre pecados e castigos. Até que estejam prontas para recomeçar. A vida ou os erros.
Helena é respeito. É história para se ouvir aos poucos. Boatos, pedaços de conversa, informações reticentes. Que falam da mulher que se levanta de madrugada para limpar bêbado, para acalmar drogado, para encontrar filhos e cachorros fugidos, para apartar briga de casal, para cuidar de idoso sem forças, para dar notícia de morte por acidente, por bala, por faca, por overdose. Que contam da mulher que pede roupas para a caridade sem nunca tirar para si e para a sua própria carestia uma peça que seja. E que faz sapatinhos de crochê para os bebês da miséria, ainda que seu útero seco tenha se recusado a dar cria.
Helena não é voz de acusação. É mulher de perdões. Mulher para um segundo olhar. Mais do que isso até.
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