Saí do elevador
e, quando ia destrancar a porta de casa, meu chaveiro caiu no chão. Baixei para
apanhá-lo e começou a gritaria. Berros em escalas ora graves ora agudas,
oitavados de desespero. Luana e Mariana certamente correndo perigo e precisando
de socorro, pronto socorro.
Com dificuldade,
consegui rodar a chave e abrir a maçaneta. Talvez muito tarde, porque, quando
entrei na sala, não encontrei alma viva. Muitas facas no chão. Lençóis
amontoados. Sapatos virados. Manchas vermelhas no sofá e no chão e um carmim
ainda mais rubro escorrendo em visgo do teto. A cantiga franca do pânico tornou-se
silêncio de livro embrulhado. Chamei as meninas e elas não responderam.
Um vento de morte
soprou pela janela da varanda. Justo àquela hora, um pio esgarçado de mau
agouro. Uma ave horrível que eu nunca vi rondar nas redondezas dava o ar da
desgraça.
Não, as meninas não estavam mais lá. Mári! Lu! Flor! Lis! Eu insistia aos
gritos, vasculhando então a cozinha e os quartos.
Mais um hálito
maligno veio da fresta da janela. Desta vez com mais força. O poder da angústia
me dominou. E agora? Eu me perguntava. A quem recorrer?
Foi quando vi
dois olhos pretos muito assustados piscando na penumbra por trás da cortina do
quarto delas. E mais dois. Ambos apavorados. Jabuticabas fixas em mim, ansiosas
por salvação.
Bem devagar,
minhas filhinhas (uma pequena, outra quase adolescente) saíram de trás do véu e
deram alguns passos em minha direção. As duas usavam farrapos. Baixaram a
cabeça. Muitas escoriações em vermelho vivo pelo corpo. Tinham as mãos atadas
por uma corda. Mas os nós eram frouxos. Abracei as vítimas e elas choraram por
um bom tempo, soluçando uma dor profunda. Não conseguiam explicar. Só pediam
perdão.
Com o barulho, o
boneco Furby acordou endemoniado e disparou a falar numa língua esquisita.
Quando ele começa, ninguém consegue acalmá-lo. Arrependida, lembrei que aquela
matraca maldita foi presente do Papai Noel.
Voltamos, então,
à sala da guerra, toda revirada, toda suja. Ninguém mais apareceu. Quando
eu ia começar a fazer os curativos, as crianças desataram numa gargalhada sem
breque. Rolavam no chão de tanto rir e se sujavam ainda mais no carmim da tinta
guache, achando graça da amoeba vermelha (massinha de modelar) que ficara
grudada no teto. Também me mostraram as facas sem corte. Brincavam de
zumbi e achavam que eu não chegaria tão cedo a ponto de flagrá-las.
Diante de
situação tão surpreendente, não consegui nem brigar com as criminosas. Era bom,
muito melhor mesmo vê-las a salvo. Enchi as duas de beijos e mandei-as para o
banho.
Maria
Amélia Elói
domingo, 26 de fevereiro de 2017
Sangue carmim
por Maria Amélia Elói
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