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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Os santos de Almires


Como em todas as terças feiras, sol querendo raiar, Almires desceu do ônibus em frente
à Paróquia dos Milagres, num bairro de gente muito rica, onde trabalhava como doméstica.

Como em todas as terças feiras, entrou na igreja, curvou-se diante do altar lá longe
e ajoelhou-se na bancada da última fila. Rezou, refletiu sobre a vida, não pediu nada.
Apenas agradeceu várias coisas: a saúde, a força da fé, a serenidade, os filhos criados
e ajuizados, o bom tempo em que viveu com o falecido Raulino, a boa casa que lhe acolhera
como cozinheira, faxineira e lavadeira. Agradeceu também a existência de Marta,
a colega que vinha toda semana fazer o que ela não sabia fazer: passar roupa.

Como em todas as terças feiras, Almires dedicou de quinze a vinte minutos do corre corre à sua
fé em todos os santos, a quem confiava seus 58 anos de felicidade - aquela que acreditava
viver, apesar dos reveses naturais, quando os santos sempre lhes ofereceram as mãos para
ultrapassar perrengues com dignidade e resignação.

Nesta exata terça feira, algo aconteceu diferente. Quando, como sempre fazia, ao pedir um
sinal de que suas preces estavam sendo ouvidas, sentiu uma mão firme sobre seu ombro
esquerdo. Não olhou para trás. Finalmente, o afago de Raulino, seu companheiro de 40 anos,
que dessa vez resolveu compartilhar seus momentos de paz e devoção.

- Perdeu, dona. Passa a bolsa.

Na mesma fração de instante, Almires sentiu na nuca algo gelado e pontiagudo. Não poderia ser Raulino. Ato contínuo, olhou para todos os santos que estatuavam pelas laterais do altar, numa súplica instintiva que olhassem por ela num momento tão inusitado. Qual nada. Todos olhavam
rígidos em direção aos céus, como se de lá viesse alguma providência divina.

- A dona é surda ou quer morrer na igreja?

Almires sem olhar para trás, sentiu mais a pressão gelada num ponto que já a incomodava.
Passou a bolsa com tudo que tinha: um chinelo, uma muda de roupa íntima, um celular tecnologicamente ultrapassado, a carteira com retrato dos filhos e de Raulino, uma imagem
de Nossa Senhora, o cartão do vale transporte e 180 reais que não eram seus. Sim, terça feira,
dia de frutas, peixe fresco, peito de frango e legumes para forrar a geladeira da patroa
na semana.

Almires sentiu a mão deixando seu ombro e o troço pontiagudo sumir. Foi-se a bolsa, ficou
a taquicardia pelo susto. Almires elevou os olhos ao altar distante, fez o Sinal da Cruz
e balbuciou entre os lábios ainda trêmulos.

- Deus sabe o que faz. 


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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