Aos trabalhadores da RTP
que
há 60 anos criam as mais engenhosas soluções
para
fazer chegar ao espectador o produto televisivo
O
menino tem uns oito ou nove anos e lança ao avô um pedido habitual:
— Conta-me
uma história verdadeira, avô! Daquelas da televisão!
Desde
pequeno que o ancião lhe conta histórias do seu passado
profissional na televisão pública, sobretudo as dos tempos
pioneiros. Há alguns anos, encontrou nessas histórias uma maneira
de entreter ou fazer adormecer a criança; agora, tem ele próprio
algum prazer em recordar momentos que na altura eram, às vezes,
pouco agradáveis e até crispados. Aliás, esses episódios antigos
surgem-lhe mais nítidos do que as vivências recentes. A idade traz
destas contradições.
— Já
tas contei todas, Ricardo! — mente ele, conscientemente. As
histórias não acabam nunca, sabe-o bem, a única limitação é a
memória. — Queres que te conte qual?
— Aquela
em que trocaram as cores das luzes da câmara do locutor, e ele fazia
caretas, a pensar que a câmara não estava a transmitir e que as
pessoas, lá em casa, não estavam a vê-lo — entusiasma-se o
miúdo. — E o teu colega que fez isso estava escondido a rir-se
muito!
Aquela
lembrança de uma brincadeira passada no Estúdio B do Lumiar
traz-lhe instantaneamente, sem saber por quê, outra recordação
mais antiga de algo a que estivera ligado, também naquele estúdio.
Não sabe se já a contou, mas envereda por essa peripécia:
— Vou-te
contar a do Homem Invisível — declara, confiante no êxito da
proposta.
— Conta,
avô, conta! Essa não conheço — delira a criança.
— Então
foi assim: no princípio da Televisão Portuguesa, havia um programa
que passava filmes policiais e que era apresentado por um senhor que
se intitulava “O Inspetor Varatojo”. Era visto por muita gente,
porque o senhor explicava muitas coisas dos filmes e a maneira como
os polícias e os detetives, por meio de raciocínio e muita
observação, descobriam os bandidos que faziam os crimes. Pedia aos
espectadores para estarem muito atentos e fixarem pormenores do local
do crime, como faziam os detetives espertos, para que lá em casa
pudessem também suspeitar de quem tinha sido o criminoso. O programa
era só isso: o senhor a explicar estas coisas e depois passava o
filme. Mas era muito popular.
Ricardo começa a ficar parado, preso à história.
— Como só tinha um senhor a falar, o programa era feito num estúdio
pequenino, ainda mais pequeno do que esta sala. E não precisava de
mais do que duas câmaras: uma para dar a cara do senhor e outra para
o mostrar em tamanho maior, a ver-se em fundo uma secretária ou um
mapa ou algo assim. Na altura, eu era operador de câmara, mas fazia
o que fosse preciso, das coisas técnicas. Nessa época éramos “meia
dúzia”, éramos como uma família. Ora, certa vez, o senhor Artur
Varatojo — era assim que ele se chamava — precisou de ir ao
Brasil, lá por coisas dele. E, portanto, não podia estar cá para
apresentar o programa, que passava uma vez por semana.
— Então,
gravaram-no a falar no estúdio, antes de ele ir embora, e no dia do
programa passaram o vídeo! — deduz o rapazito, já muito rodado em
tecnologias recentes.
— Pois…
O problema, Ricardo, é que nessa altura não havia gravadores de
imagem, só de som… — articula o avô, ciente da mossa que está
a causar nas certezas do petiz e do aumento de curiosidade que lhe
está a suscitar.
— Não
havia, avô? Como é que isso podia ser?
— Era!
Não havia. Tudo era feito em direto: peças de teatro, concertos,
provas desportivas, telejornais. Só quando alguma coisa não se
conseguia passar em direto é que se filmava.
— Já
sei, filmavam com uma máquina fotográfica, como aquelas que tens
guardadas — adianta-se o neto, a agrupar informações.
— Isso!
Mas maiores; máquinas de filmar que usavam grandes rolos de fita de
filme. Era um processo complicado, demorado e caro. Por exemplo, as
notícias para o Telejornal eram captadas em filme. O operador,
depois de as filmar, voltava para os estúdios, levava o filme ao
laboratório, onde era revelado; depois era montado, para tirarem as
partes sem interesse e só então era posto na máquina que o
transmitiria durante a emissão do Telejornal — descreve o
ex-técnico com pequenos lampejos no olhar. — Percebeste tudo?
— Hmm!
Acho que sim. O avô já tem falado disso.
— Mas,
dessa vez não filmaram o Inspetor Varatojo, já não me lembro por
quê. Se calhar, foi só porque o Inspetor não pediu esse serviço,
talvez porque tivesse gostado da solução engenhosa que combinou comigo.
— O
quê, avô, tu é que resolveste o problema? — recrudesce o
entusiasmo parental do rapaz.
— Já
não me lembro de quem teve a ideia. Lembro-me de que o Inspetor veio
falar comigo, a dizer que tinha de ir ao Brasil, e depois alguém
teve a ideia. Não sei se foi ele ou eu ou alguma outra pessoa que
assistiu à conversa. Sei que nessa altura — o antigo operador de
câmara semicerra os olhos, a concentrar-se na memória que cada vez
está mais volátil — devia ser aí por 1961, 62..., andavam a
passar na televisão os filmes do Homem Invisível. Com grande êxito.
E uma coisa levou à outra. Pois se o Inspetor não estava cá…
estava invisível. Às vezes umas ideias puxam as outras.
— O
quê, avô, o quê? — o jovem não cabe em si de excitação.
— Se
não podia ver-se o Inspetor em imagem, porque é que não se havia
de fazer como nos filmes do Homem Invisível? O quê? — Pôr o
Inspetor Varatojo a apresentar à maneira do Homem Invisível! Como?
— Um tipo qualquer embrulhado em ligaduras. Ou então… invisível.
Com a voz do Inspetor.
— Eh,
avô, isso era batota, não? Só o som?
— Era
só um programa, mas o problema é que ficava uma imagem muito pobre,
sem movimento. Televisão são imagens a mexer. É o que as pessoas
esperam. Então resolvemos dar-lhe algum movimento, para parecer
verdade, e a coisa ficou combinada. Fizeram-se as gravações de som
do Inspetor Varatojo a apresentar os seus filmes policiais e ele pôde
ir à vida dele.
Com
tanto contacto com filmes, o ex-técnico aprendera alguma coisa da
maneira de fazer render uma história, até porque também passara pela realização.
— O
que combinaram, avô? Diz, diz! — desvaira o moço, com tanto
suspense.
— No dia do programa — acho que era às segundas-feiras — apontou-se uma câmara de frente para uma secretária com uma máquina de escrever em cima, e outra câmara só a mostrar a máquina, do ponto de vista de quem olhasse por cima do ombro direito de quem estivesse sentado à secretária a escrever à máquina. Era uma máquina daquela época, grande, mecânica, com uma letra metálica em cada braço comandado por uma tecla. À hora do programa, quem estivesse em casa a assistir ouvia o bater das teclas e o Inspetor Varatojo, com a voz de sempre, a apresentar os filmes, mas não via o Inspetor, supostamente sentado à secretária, a ler o que batia à máquina; só a parede para lá da secretária e da cadeira.
— Um sorriso deliciado, mas subtil, aflora ao rosto do narrador.
— A outra câmara ia mostrando a máquina de escrever a bater as teclas sem ninguém lhe tocar. Ninguém, não! A voz do Inspetor avisara no princípio, em tom maroto, que nesse programa ele próprio estava invisível…
— Boa,
avô, fantástico! Isso devia ser ainda mais interessante do que nos
outros dias, não? Mas como é que as teclas batiam sozinhas?
— Eh,
eh, eh! — a voz excitada do miúdo é música para os ouvidos do
ancião. É hora de lhe fazer, finalmente, a revelação. — Por
baixo da secretária em que a máquina estava pousada, estava eu, com
dez cordéis presos aos dedos, cada cordel a um dedo e a um braço da
máquina… Enquanto ouvia a voz gravada do Inspetor, eu ia puxando
ora um, ora outro cordel, dando a ideia de que o Inspetor invisível é
que estava a acionar as teclas...
— Caramba,
avô! Afinal, nesse dia, o homem invisível eras tu!
— Sim,
e era duplamente verdade — eu também estava bem invisível por
debaixo da secretária.
— E as pessoas a julgar que era o Inspetor Varatojo invisível… Esta foi boa, avô! Devia ser muito divertido trabalhar na Televisão. Quando for grande, quero ir trabalhar para a Televisão. Agora, queres jogar à bola?
Joaquim
Bispo
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3 comentários:
um avô artista da TV, Rádio e da Cassete Pirata como diz o Grande Tio Herman José.
Este avô sempre tinha então muito jeito para mexer cordelinhos...
Abraço amigo bishop.
Estes pequenos contos verdadeiros, narrados por quem viveu directamente as estórias, terão que fazer de uma colectânea a publicar, quem sabe, daqui a alguns tempos.
Pessoalmente estou a escreve-las apelidando as mesmas de "Estórias Irreais", pois há algumas que se forem contadas como reais ninguém acredita.
Bonita estória Duarte Bispo.
Parabéns.
Embora de grande simplicidade, gostei de ler "O homem invisível". Fez-me recuar aos velhos tempos da RTP e recordar alguns programas, como os referidos, que deixaram saudades a quem, como eu, é desse tempo... O Inspector Varatojo também mantinha um programa policial na antiga Emissora Nacional, na emissão da manhã das quintas-feiras, intitulado "5º Programa". Parabéns, J. Bispo. Um abraço.
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