E no princípio era o tédio. O tédio da perfeição. Um derredor irretocável de verde e luz e astros que nunca colidiam num firmamento harmônico e sonolento. Uma terra vermelha, em paz de repouso, intocada de plantio e frutificação. Uma água em adágio se acomodando em mares e rios e lagos e grotas. Trabalho de cinco dias. Longos dias.
Hora de descanso. De contemplação. Mas o sono não vem. E a exaustão que não repousa se desdobra em febre. Delírios. Não basta, não basta, não basta. É preciso mais. Mais do que apenas o barulho das pedras batendo umas contra as outras, do que o vento roçando o capim, do que os trovões fazendo tremer a terra, do que a chuva arrancando ritmos das copas das árvores.
Sim, é preciso mais. E inicia-se um sexto dia em mugidos, pios, rosnados, cacarejos, balidos, zurrados. Que saltam de criaturas isentas de pensar, mas sencientes. Dotadas de voracidade e faro. De ouvidos e olhos projetados para as distâncias e para a escuridão. Som e movimento. E tudo isso já é verdade quando termina a manhã.
Mas falta ainda.
Insatisfeita, a Inteligência Criadora de todas as coisas procura respostas dentro do seu próprio núcleo. E tudo o que encontra é uma vontade intensa de repetir a si mesma, de se multiplicar em imagem e semelhança. Sentando-se, então, sobre a terra vermelha que a chuva transformou em barro, toma um punhado daquela lama em suas mãos. E brinca.
Primeiro são ossos, veias, sangue. E pele para cobrir tudo isso. Depois são olhos, boca, nariz, ouvidos, queixo, peito, quadris (em traços de maior delicadeza do que aqueles que concedeu aos bichos). Mãos menos capazes do que garras. Pés menos velozes do que patas. Coisas semelhantes, mas reduzidamente em tamanho. E não há injustiça nessas diferenças.
Moldado esse animal menor, macho e único de sua espécie, concede-lhe atributos que não possuem os animais.
<Eu te concedo o poder de caminhar sobre apenas duas pernas.>
<Eu te concedo o direito ao pensamento, e às palavras, e à sabedoria, e às emoções.>
<Eu te concedo a existência livre de transgressões e culpas.>
<Eu te concedo o livre-arbítrio.>
E, feito isso, chama aquele macho pelo nome Adão. Homem criado da terra vermelha. E sopra sobre ele a vida. E quase se retira para finalmente repousar.
Mas, mais uma vez, ainda não. Porque o impede do descanso a lembrança da sua própria solidão.
Então, antes que seque o barro vermelho do corpo recém-trazido à vida, arranca dele uma costela, a maior de todas. E cria dali um outro corpo. Um corpo de fêmea a quem chama Eva. E lhe concede os mesmos atributos. E a dá por companhia a Adão.
Saciada, a Inteligência Criadora contempla tudo. E o sétimo dia está para despontar, quando Adão apresenta-lhe um questionamento. Falam-se por algum tempo. Eva, à distância, não sabe que é alvo da primeira discussão entre Homem e Criador. Faz-se, então, silêncio. E a Inteligência Criadora se afasta para meditar.
Durante toda a manhã, criaturas e água e terra e firmamento se calam, em obediência respeitosa. Mas pouco depois que o sol está em zênite, a Inteligência Criadora retorna e senta-se sobre a terra vermelha. Retira de Adão mais uma costela. E cria outro corpo à sua imagem e semelhança. Ao novo ser chama Homo. E o dá por companhia a Adão e Eva.
É hora de descanso e gozo. Sentados sob uma macieira, Homem, Mulher e Homem se entreolham. Nos galhos acima deles, enroscada, uma serpente desnorteada se consome em indecisão.
2 comentários:
O segundo final, a serpente se consumindo em indecisão... ADOREI!
Obrigada, Cecilia!
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