Ela
entra em casa com as sandálias dependuradas na mão esquerda. Um tom leve de
rosa cobre-lhe as unhas, e é em bico de pé que entra no quarto, as sandálias a
balançarem fitas que ela ataria a cada perna se as calçasse.
Jerónimo
dorme.
Ele
dorme sempre a esta hora.
Duas
da tarde e ele a ressonar sonhos que, depois, lhe conta, madrugada fora, o
cabelo dela derramado na sua coxa nua e Jerónimo passeando-lhe as mãos.
Foi
assim que ela soube que ele sonhava com o mergulho na lagoa.
Eufemismo,
esse, de chamarem o mergulho
na lagoa ao que se dera.
Mais
dois passos e ela deixa cair as sandálias.
Reverbera
no soalho um som imenso que desfaz o silêncio da casa e se estende até àquele
mar de água plasmado lá ao fundo. Um mar de água doce que é a lagoa e, a
esconde-lo e a mostrá-lo, ao ritmo duma brisa que sopra, morna, desde que
amanheceu, o cortinado.
As
sandálias fazem um ruido imenso, apesar do tapete que ela bordara a imitar as
bordadeiras do Alentejo; tapete para onde deixa escorregar a túnica antes de se
estirar na cama larga, o bronzeado do seu corpo nu a contrastar com o alvo do
lençol, que eles nunca põem sobre a cama uma colcha ou outro pano que não seja
muito branco.
Ela
ao lado de Jerónimo que não reage ao ruido que fazem as sandálias ao caírem no
tapete.
Jerónimo
que dorme coberto por um calção aos riscos verdes e brancos. Verdes como lhe
veríamos os olhos se estivesse acordado e sem as lentes escuras com que se
protege daquele sol do Mediterrâneo.
Jerónimo
com os caracóis negros humedecidos dum suor igual ao que goteja, aqui e
ali, na pele do seu corpo muito da cor de um rosa de carne, quase nacarado.
De
madrugada, ele irá contar-lhe, como é o costume.
Primeiro,
passeia-lhe nos seios os mesmos dedos com que lhe serviu uma bebida: limão e
cidra com um aroma de hortelã acabada de colher no vaso da varanda; e
sempre antes de ter dito: a bicicleta escorregou; que ele ainda lhe gaba o seio
e lhe sorri.
E
beija-lhos dobrando-se sobre ela, e sorri-lhe de novo, e torna a passar-lhe os
lábios, ao de leve, nos mamilos.
Mas,
ainda mal o contar do sonho tem início com aquele dizer que a bicicleta tinha
escorregado, e já os dedos de Jerónimo se deslassam sobre o corpo dela como se,
de repente, tivesse ali ficado outro ele, sejam outros os dedos que estão a
tocá-la. E ela, tensa no ouvir do que seria o sonho que Jerónimo tinha tido
nessa tarde, encolhe-se sobre si mesma, numa volta rápida, de modo a deixar que
ele fique a passar-lhe dedos inquietos no cabelo ainda meio molhado do banho na
lagoa e do suor, que nem a brisa acalma o calor daquele fim de agosto.
–
Acredita, diz ele, a dirigir-se-lhe e, no entanto, parecendo que fala sozinho.
–
Acredita que tive medo como se fosse de verdade.
A
bicicleta deslizando e Jerónimo sem conseguir correr.
Ele
a gritar: salta Francisco, salta.
Ele
a dizer: não te deixes entrar na água, salta.
Jerónimo
num desespero a gritar socorro, acudam, e a repetir o nome: Francisco,
Francisco, Francisco.
Foi
assim naquela tarde.
Ela
sabe.
Foram
dois minutos, um minuto, poucos segundos; a eternidade é o que pareceu, e
ninguém para ouvi-lo naquele local que, de repente, era um ermo: a falésia e a
praia e a lagoa e nem um barco à hora a que se deu. Nem um pastor pastando umas
cabras; ninguém que tivesse visto, que tivesse acudido.
Jerónimo
a contar o sonho diz-lhe que ainda não havia telemóveis, e que as pernas dele
já não se moviam, como antes.
–
Antes do acidente, eu corria, diz-lhe Jerónimo, e ela sabia.
E,
a dizer assim, acaricia-lhe os cabelos cor de fogo ou cor de papoila ou cor da
terra vermelha que é como ele costuma dizer-lhe: tens cabelos da cor da terra
em África.
Jerónimo
sem poder mover-se, depois do acidente, tinha gritado e tinha chorado, que a
bicicleta estava a afundar-se na água e com ela o Francisco.
E
a contar o sonho, ele diz deste modo:
–
E depois, por uns segundos, o corpo do menino fica a boiar, e eu acordo.
Ele termina o contar do sonho e ela desenrola-se de si mesma e enleia-o no seu corpo: braços mãos pernas cabelo.
na imagem desenho de Egon Shiele
1 comentários:
E a sonhar, sonha-se o sonho que se quer contar!... E, que bem contado... Réjo Marpa
Postar um comentário