Após
o jantar na sua mansão campestre de Oxfordshire, o casal Morris e o
amigo Dante Rossetti ocupavam o serão, como habitualmente, trocando
impressões sobre a genuinidade da pintura anterior a Rafael e a
planear pôr em prática a arte para o povo, através da empresa de
arts and crafts que tinham fundado. Morris, amigo de Engels e
socialista assumido, idealizava produzir mobiliário e outros objetos
de uso diário que pudessem ser uma alternativa aos da produção em
série da indústria, mas com a qualidade estética que os artistas
empenhados no projeto lhes incutiriam. A certa altura, falou-se de
jogos de tabuleiro e da importância da vertente estética, mesmo em
objetos habitualmente só associados ao lúdico, e referiram as
potencialidades estéticas dos tabuleiros de gamão e de xadrez.
Dispuseram-se a jogar gamão, mas, como não dava para três
jogadores, viraram-se para as cartas. Optaram por jogar rummy,
que entretanto passou a póquer. Pouco depois, Jane, a mulher
de Morris e modelo de pintura de ambos, sugeriu o strip póquer,
argumentando:
― Já
me despi muitas vezes para vós. Agora, é altura de vos ver despir
para mim!
Prontamente
aceite, o jogo foi decorrendo no meio de muitas gargalhadas.
Rossetti, percebendo a tensão voyeurista de Jane, ia-se deixando
derrotar e expunha mais e mais o seu corpo, sobretudo quando o
confronto se resumia aos dois. Este comportamento perdedor tornou-se
muito evidente e foi percebido por ambos os membros do casal.
― Assim,
não vale ― queixou-se Jane. ― És exibicionista ou não te
apetece jogar?
― Não
― explicou Rossetti ―, tenho estado a pensar se não seria altura
de alterarmos a estrutura dos jogos desta sociedade de competição.
Os jogos são combates. O mundo anda a combater há demasiado tempo.
Os jogos podiam ser idealizados para incentivarem a cooperação
altruísta e não a competição egoísta. Aliás, William ― disse,
virando-se para o amigo ―, tu próprio construíste um tabuleiro de
xadrez para três jogadores, lembras-te?
― Sim
― reconheceu Morris ―, mas nunca achei que fosse muito
interessante. Era mais cooperativo, sem dúvida, mas não gerava uma
cooperação sã: sempre dois dos jogadores se uniam,
circunstancialmente, para derrotar o terceiro, para, por fim, se
enfrentarem. Nem a cooperação era desinteressada, nem a competição
límpida. Não creio que a sociedade já esteja pronta para a
abolição da competição.
― Se
calhar, é uma questão de regras ― contrapôs Rossetti. ― Talvez
seja altura de criar regras cooperativas para os jogos. E para a
vida. A sociedade tem que se defender da competição desenfreada.
Vou-vos contar ― sobretudo aqui à nossa musa ― o que se passou
em Florença, e o mal que a competição fez à República:
No
início do séc. XVI, o governo da cidade encomendou a pintura de
dois murais, para a sala do Grão Conselho do Palazzo Vecchio, aos
dois artistas de maior nomeada, à época ― Miguel Ângelo e
Leonardo da Vinci. Cada um deveria pintar, a fresco, numa
enorme parede do salão, uma batalha travada pelos florentinos.
Miguel Ângelo foi incumbido de pintar a batalha de Cascina, na qual
Florença derrotara Pisa e, na parede oposta, Leonardo deveria pintar
a batalha de Anghiari, em que os florentinos bateram os milaneses.
A
situação era de grande oposição. Os dois mestres tinham
personalidades completamente diferentes: enquanto Leonardo era um
homem racionalista e habituado ao brilho dos salões das cortes,
Miguel Ângelo era um intuitivo e um emotivo, e pouco hábil nas
relações frívolas. Além disso, não gostavam um do outro.
Leonardo era, talvez, mais reconhecido, mas o ascendente Miguel
Ângelo tinha acabado de produzir a marcante estátua de David. A
competição pela aura de maior artista do tempo estava em jogo e
resolvia-se nesta contenda decisiva. A comparação, frente a frente,
não podia ser mais incontornável e quem perdesse o confronto
ficaria, compreensivelmente, humilhado e seriamente debilitado, em
termos de estatuto artístico.
― Estás
a querer comparar essa confrontação com uma partida de póquer?
― quis saber Morris.
― Sim;
perdoai se a comparação vos parece abusiva. Na verdade, cada um
conhecia alguns pontos fortes do outro, mas não sabia que
“cartas” ele ia apresentar. Leonardo apostou no que
conhecia bem, pelos inúmeros estudos que tinha feito: cavalos. Os
seus desenhos preparatórios mostravam, na parte central, o embate
terrível de dois pares de cavaleiros, em que parecia que cavalos e
cavaleiros se interpenetravam, no choque. O virtuosismo do desenho
dos animais e as faces de terribilitá dos cavaleiros eram “o
par de ases” em que Leonardo pretendia apoiar o restante “jogo”.
Miguel Ângelo apostou na sua experiência de desenho do corpo
humano, compondo um enorme cartão preparatório onde eram
representados muitos soldados florentinos nus, no momento em que
tinham sido surpreendidos, pelo exército pisano, a tomar banho no
rio Arno. A sua musculatura supra-humana e a composição arrojada
seriam as “cartas” de contraposição ao “jogo” do
adversário.
Passaram,
talvez, dois anos, sem que as paredes do salão vissem os traços
planeados. Estariam a adiar o momento em que, finalmente, tivessem de
mostrar o que estavam a preparar e não mais pudessem fazer bluff?
Não sabemos. Certo é que Miguel Ângelo nunca passou o desenho para
a parede e Leonardo passou parte, mas usou uma inovadora combinação
preparatória do suporte que correu mal ― a tinta escorreu quase
toda para o chão. Não será crível, mas até parece que esse
desaire tenha sido intencional. Para adiar o confronto não desejado
e até temido.
Cada
um deles foi entretanto chamado para outros projetos e não chegaram
a mostrar a força da sua “mão”. Eis a deplorável herança que
a competição nos legou ― a perda de duas obras de arte que
seriam, provavelmente, extraordinárias.
― Na
verdade! ― comentou Jane. ― Mas não vejo a relação com o nosso
jogo…
― Se
o jogo perverso que os acirrou à disputa, pelo contrário, os
tivesse incentivado à colaboração ― continuou Rossetti ―,
poderíamos hoje contemplar as obras-primas que as “roupas” da
competição sonegaram. Eis os malefícios da competição. Por isto,
eu queria perder este nosso jogo. Se eu teimasse em tentar ganhá-lo
― sorria matreiro ―, corrias o risco, minha boa amiga, de não
chegar a contemplar a plenitude desta obra que, sem ser prima, tem
autenticidade pré-rafaelita.
E
dizendo isto, atirou fora o resto da roupa com gestos largos, para
grande gáudio dos amigos.
― Tonto!
― ria Jane, divertida. ― Dizes isso porque não sabes jogar. E já
sabias que ias perder.
― Ora,
ora ― gracejava Morris, fingindo zombar do amigo ― tanta conversa
para isto? Nem sequer um ás…
Afinal, estavas a fazer bluff!
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Leonardo da Vinci, Batalha de Anghiari, afresco, Palazzo
Vecchio, Florença, 1505.
(Cópia
da autoria de Peter Paul Rubens de 1603.)
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(Este
conto obteve o 1º prémio na categoria “Conto [de autor externo à
Universidade]”, no Concurso Literário da UFLA (Universidade
Federal de Lavras) de 2015 — Lavras, Brasil.)
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[Este
é o primeiro 1º prémio do autor em concursos literários (e único,
até agora).]
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7 comentários:
Parabéns Joaquim Bispo.
Magnifico !
Ab amigo e desejo de boa semana
Prezado
Recebo regularmente os seus escritos que leio geralmente agradado.
Não os sei analisar, limito-me a lê-los.
Este último, Confrontação, vinha acompanhado pelo trabalho de Leonardo, creio.
Seria interessante ver o de Miguel.
Cumprimentos,
Obrigado, Pedro.
Abraço!
Obrigado pelas leituras, Anónimo! E pela sugestâo.
Eis o cartão de Miguel Ângelo, em cópia de Bastiano de Sangalo: https://it.wikipedia.org/wiki/File:Battagliadicascina.jpg
Joaquim Bispo, amei seu conto Confrontação, maravilha, gratidão
Obrigado, Desconhecida/o!
Caro Joaquim; ésempre com prazer que leio os seus escritos.
Parabens
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