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sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Casa de repouso


Gosto daqui. Deste silêncio que só é rompido por sons rotineiros. Os ruídos da TV na sala grande; o chiado das panelas na cozinha iluminada; o barulho das chaves pesadas, trancando as portas à noite. Gosto dos bancos no gramado. Sempre me dão a sensação de que estou num jardim inglês. E que a qualquer instante distraído serei Elinor ou Marianne Dadhwood, talvez a própria Austen pensando aborrecida sobre o desprezo de Mark Twain ou rindo da afirmação de Margareth Oliphant de que seus cenários se repetem em todos os livros. Não importa. Desconheço mulher da minha geração que não tenha desejado despertar amor em Edward Ferrers.
Em qualquer cenário.
Meu lado razão também gosta daqui. Das conversas diárias, dos hábitos recorrentes, da segurança do sono protegido pelos cães, meus cães — gosto de pensar, sem medo de competir com ninguém por seu afeto. Só lamento que durante o dia fiquem presos no canil. Mas à noite Olavo, o vigia, me deixa brincar um pouco com eles antes de ir dormir.
Chuck, o pastor belga, gosta de afagos leves ao lado das orelhas. Mais que isso e ele se afasta das minhas mãos, discretamente. Cleópatra, uma rotweiller imensa, me dá a barriga para que eu lhe faça cócegas e eu fico imaginando se não fará o mesmo caso um ladrão pule os muros. Ginger, a labradora que rebola ao caminhar, chega perto, me cheira fungando, depois se vira de costas e senta-se pesadamente em um dos meus pés. Fiquei sabendo que tentaram treiná-la para ser guia de pessoas cegas, mas ela não se adaptou porque é muito agitada. Minha garota rebelde. Sherlock, um velho dobermann, é o único arredio. Só me olha de longe. Não é um olhar perigoso, mas sinto que falta química entre nós. Respeito isso. Em cães, em gente. 
Goretti não vem hoje. Está de folga. Mas me emprestou dois livros e uma lupa para eu não ter a desculpa de deixar de ler porque meus óculos estão fracos. Cem Anos de Solidão e Estórias abensonhadas.  Já li e já li. Mas não lhe direi. Detestaria desapontá-la. Desde que ficamos mais próximas, e eu lhe contei sobre minha paixão pela leitura, ela se esforça em descobrir meus autores preferidos para me trazer uma, duas vezes por semana livros que toma por empréstimo na biblioteca pública. Tenho certeza de que Goretti é solitária. Sim, eu sei, apesar de separada, ela mora com a mãe, tem filhos, família grande. Mas é solitária. Que solidão não é quando falta companhia, mas quando insiste um vazio que nunca se preenche. Só os que afundam e flutuam alternadamente nesse abismo sem fundo se tornam gentis. E seguem gentis, mansos, esperando qualquer paraíso que tenha o calor de um abraço, de um agradecimento sincero. Goretti é assim. Acho que por isso me preocupo com ela e com o segredo que enxergo em seus olhos cor de mato. Os mansos me assustam. São possibilidades incertas. Podem ceder e ceder a vida toda, mas sempre haverá um momento de revolta. E desses momentos só se sabe que causam estragos.
Por que será que me sinto inquieta quando Goretti está de folga? Ela cuida de mim desde que vim para cá. Conhece meu jeito, minhas manias. É uma profissional como poucas. Atenta aos medicamentos, organizada, mãos firmes e delicadas para aplicar uma injeção ou pegar uma veia. Acho que gosta de mim. Eu gosto dela. Tem praticamente a idade dos meus filhos, mas é muito mais madura do que eles. E mais amorosa.
Olavo está me encarando, pensando se interrompe ou não meus pensamentos. Quer me avisar que os cachorros estão impacientes, esperando carinho. Os rabos abanando me cumprimentam como leques vertiginosos, convidando aos nossos rituais noturnos. Sozinhos nesta parte do jardim, eu e os cães em conversa intraduzível. Mas, hoje, há mais alguma coisa. O rapaz continua me encarando, aflito.
< A senhora tem um minuto, D. Ágata? >
Tenho vontade de soltar uma gargalhada, mas me contenho; poderia ofendê-lo. Olavo, assim como Goretti, é dessas criaturas especiais que encantam pela simplicidade. Não há subterfúgios, segundas intenções ou estratégias no seu modo de ser e de se relacionar com as pessoas. Sim, rapaz, eu tenho minutos, horas, semanas. Tempo demais para ouvir o que você vai me dizer, apesar de pressentir que não ouvir seria melhor. Na verdade, eu não quero saber nada do que você veio me contar sobre essa gente trancada como marginais, sobre esses corpos despejados em meio a pilhas de remédios e ao falso conforto dos seus quartos mobiliados com mentiras de última geração. São vidas inúteis. E não me lembro de sentimento mais humilhante do que se sentir inútil. Perceber que as pessoas se calam quando você chega, que inventam coisas para manter você bem longe delas, que bocejam enquanto você fala, que nada do que você faça tem valor para ninguém.
Olavo me fala do que eu já imaginava. Que esta noite alguém quer deixar de viver. E ele me pede que intervenha, que impeça. Eu me pergunto se conseguirei. Tenho horror à morte, essa trapaceira sem-vergonha. E de imediato o que me vem à cabeça são os versos do moçambicano: “Morre-se nada quando chega a vez; é só um solavanco na estrada por onde já não vamos. Morre-se tudo quando não é o justo momento, e não é nunca esse momento". Queria conhecê-lo. Vi-lhe a foto: uma cara comum. Mas eu romperia madrugadas ao seu lado, ouvindo poemas e contos magníficos.
Vamos, pensamento, se aquiete. Preciso ouvir Olavo, porque é certo que alguém deseja morrer hoje. Alguém que roubou um vidro inteiro de comprimidos.
< Quem pegou os comprimidos? >
Ele me olha, magoado. Percebe que eu não estava escutando sua história importante.
< Olavo > — digo, sem mentir — < Quando se chega à minha idade, é inevitável que a gente se distraia com frequência. Qualquer coisa nos leva para longe dos fatos. >
No mesmo instante, a mágoa se transforma em carinho. E me sinto mal por saber que manipulei sua bondade para me livrar da minha falta.
< O Sr. Juarez. Roubou o vidro de calmantes. A senhora acha que ele vai tentar... vai tentar ... >
Vai. Talvez já esteja tentando, neste instante, ou talvez prefira esperar que as enfermeiras façam a checagem noturna para só depois sentar-se na beira da cama, pensar por um momento na família, nos amores, fazer suas últimas orações, pedindo perdão, convencer-se um pouco mais sobre a proposta sem aval de que tudo será melhor num outro mundo, e engolir a overdose programada.
Antes de me apressar para dentro de casa, despeço-me dos cães, essas criaturas magníficas que compreendem tudo. Eu não quero ir. Não gosto que acontecimento algum atrapalhe as minhas noites tranquilas. Mas a iminência da morte não é mesmo coisa para se gostar.
Juarez não está na sala de jogos. Nem perto da televisão onde três senhoras e duas enfermeiras esperam a novela começar. Cada hóspede tem o seu próprio aparelho de TV instalado no quarto, mas a maioria prefere assistir aos programas na companhia uns dos outros. Sigo rápido até a ala masculina e paro na porta de um quarto igual a todos os outros. Duas batidas. Nenhuma resposta. Pode ser muito tarde. Desta vez, seis ou sete batidas mais fortes. Não há mesmo resposta. Hesito, com a mão na fechadura. Não quero encarar o irreparável. Mas tenho que fazer isso. Com a mão trêmula, abro a porta, agradecendo às regras que não permitem chaves ou trancas nos quartos. O escuro é quase total.
< Juarez? > — digo, me aproximando da cama onde o vejo deitado.
Mas ele não se vira. Não consegue. O efeito dos comprimidos já está adiantado e eu escuto seus gemidos baixos. Aperto a campainha insistentemente e crio coragem para olhar novamente para aquele homem deitado. Seus olhos, mesmo semicerrados, estão com medo. Por quê? Por quê?, pergunto baixinho; e, por um instante, tenho a impressão que o escuto dizer: Chega. Tento segurar sua mão magra, de ossos salientes, mas ele entra em convulsão. Os dois enfermeiros chegam para tentar ajudá-lo e eu me afasto para não atrapalhar. Há muito não tem vida neste quarto.
No corredor, rostos curiosos me perguntam o que houve. Não quero falar. Eu ainda converso com Juarez em pensamento para tentar entender por que hoje, por que tão sem sinais. Vou para o jardim, mesmo sabendo que estou no contrafluxo das pessoas. Preciso dos cães que estão agitados do lado de fora, sentindo a movimentação anormal da noite. Ou talvez seja o cheiro da morte. Assim que saio, Ginger é a única a roçar a minha mão com o focinho. Chuck e Cleópatra estão em posição de alerta, orelhas levantadas e olhos fixos no interior da casa, reverenciando mais uma partida. Não vejo Sherlock, mas talvez seja a minha visão deficiente que não consiga distinguir o seu pelo negro na escuridão. Olavo não se lembrou de religar as luzes externas e tudo o que faço é ouvir a respiração dos bichos.
Quando alcanço o banco, estou estranhamente desalterada. E só percebo as lágrimas quando uma delas me chega à boca. Juarez está morto. Decidiu tudo em silêncio, como fazem os que não têm dúvidas. E as tardes de jogos de cartas e as noites de novela e as conversas naquele mesmo banco não existem mais. Assim, num repente, expondo a fragilidade do tempo. 
E logo hoje que Goretti não veio. Eu queria muito que ela estivesse aqui. Para me dizer que desta vez não deu. Não, não deu. E daí? Que inferno isso! Eu não tive culpa. Eu nunca perdi nenhum deles. Mas desta vez não fui capaz de enxergar os gestos de despedida, o silêncio anormal, os olhos de fim. Ai, meu Deus, como eu estou cheia disso! Morte desgraçada. Como eu te odeio.
< D. Ágata, a senhora está bem? > — Olavo se preocupa com o meu silêncio.
< Estou sim, meu amigo. Só um pouco triste. Foi a primeira vez que eu... que eu não consegui chegar a tempo, sabe?>
Ele me olha com carinho. Não sei se entende realmente o que eu sinto. Que o que me consome não é a morte de Juarez, mas o meu atraso.
< A senhora já contou quantos foram?>
< Como?>
 < Quantos estão vivos graças à senhora. >
Na verdade, nunca me ocorreu contar. Seis, ele me diz. 
Marta, minha amiga de infância. Câncer de intestino. Uma lâmina que sumiu do ambulatório. E uma conversa sobre céu e inferno, sobre um deus a quem ela se curvava, sobre o pecado da morte provocada. Meses mais tarde, já em fase terminal, me confessou que não se arrependia de ter esperado pela “morte certa”, porque iria se encontrar com o seu deus. Muito tempo depois, eu ainda a invejava pela sua fé. Por essa crença em paraísos e anjos que torna tudo mais fácil.
Heloísa. Coração fraco. Marido e filhos mortos num acidente de avião. Ela sobreviveu por causa do trabalho que a reteve por um dia. Durante o enterro da família, o primeiro AVC, que a colocou para sempre numa cadeira de rodas. Não andava porque não queria, diziam os médicos. Não, doutores! Não andava porque não tinha para onde ir, para quem ir. Um frasco de remédio de pressão desapareceu do carrinho de enfermagem. Encontrei-a sentada ao lado da janela, comprimidos enfileirados no parapeito, mãos na cabeça. Deu trabalho. Mas, no fim, deixou-se convencer pelo argumento de que um único movimento errado neste mundo seria capaz de mandá-la para bem longe dos filhos, dos pais, do marido naquela outra vida que ela tinha como certa. Até hoje a vejo na sala, olhos sem viço, fingindo assistir à TV ou lendo livros que nunca termina. E me pergunto se não teria sido melhor deixá-la fazer o que queria e ainda quer. Mas então a escuto ao piano, nos fins de tarde, tocando Chopin, seu predileto. E vejo que ela está em paz com o seu tempo de espera.
Leonora e os rins que não funcionavam. Uma noite longa convencendo-a a largar a faca com que pretendia cortar os pulsos. Leonora e seu transplante bem sucedido, poucos dias depois. Por aqui, uma história feliz nunca é esquecida.
Ernesto. Abandonado pelos filhos por causa do alcoolismo. Sem visitas. E o veneno de ratos roubado do galpão no fundo do jardim. Uma noite de argumentos nos quais ele acreditou mais do que eu. Meses mais tarde, apaixonou-se por uma massagista que atendia aqui. Casaram-se e ele montou uma clínica para ela. Nunca mais bebeu.
Mas falta alguém. Duas pessoas, pelas contas de Olavo. Sim, sim. O enfermeiro da ala masculina. Natal do ano passado. Dívidas, muitas dívidas, e um filho pequeno cujo único desejo era ganhar uma bicicleta. Subiu até o alto do prédio sem que ninguém notasse. Ginger notou. Com ele, não teve conversa. Teve bicicleta. Uma coleta no fundo da minha bolsa o resgatou do telhado. Mas ele não sabe que fui eu; se ofenderia. 
Falta alguém. A minha memória está cansada; não tenho mais lembranças disponíveis. Mas Olavo me conta uma história que eu ainda não sei. De uma mulher infeliz que queria morrer para escapar do marido violento. E que um dia, num jardim cheio de cães, escutou quando uma velha senhora leu em voz alta: “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”
Então, eu estava certa. Goretti e seus olhos cor de mato têm mesmo um segredo.

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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


2 comentários:

Potente como uma fé. Mais do que uma queixa dorida pelas dores sentidas nos outros. Uma história mesmo. Com a aura de um policial clássico. E que personagens!
Muito completo. Do melhor.

Muito obrigada, Joaquim! A sua opinião tem um peso grande para mim e para a minha escrita. Fico feliz demais! 😀

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