A
razão porque os homens não são vistos mais vezes na cozinha a
preparar rissóis, pastéis de massa tenra, filhós, pizas, folhados
é, provavelmente, porque ainda não descobriram as virtualidades
sensuais da manipulação das massas.
Roberto
não acolheu com muito entusiasmo a determinação da mulher de que
nesse
ano iriam
passar o Natal com os pais dela, numa aldeia perdida das Beiras, mas
um par de horas antes do almoço de dia 24 já estavam junto da mãe
de Vanda a vê-la amassar as filhós. Juntava o fermento dissolvido
em água morna à farinha peneirada, que formava um grande monte a um
lado da masseira, e ia misturando pouco a pouco o azeite morno e as
três dúzias de ovos batidos. Quando a massa parecia muito lassa,
juntava mais umas mancheias de farinha; se começava a ficar pesada e
difícil de manipular, acrescentava mais líquidos ― ovos, azeite,
sumo de laranja, aguardente. Por fim, vinho do Porto. Dona Rosália
metia os punhos fechados dentro da massa, com energia, ora um ora
outro, pegava numa ponta esparramada de um lado e dobrava-a por cima
do resto, voltava a empurrar e a esmurrar, voltava a repuxar pontas
para o meio, num sovar diligente e enérgico. Os seios fartos
dançavam-lhe por dentro das roupas grossas, cobertas pela eterna
bata de florinhas, num ondear marcado pelas marés da massa a que
Roberto não era indiferente. A operação parecia uma luta
deleitosa, sem fim nem propósito utilitário, mas aos poucos a pasta
lisa, carnal e maleável como barriga de mulher,
ia crescendo a um lado da masseira. Mais um pouco de azeite sobre
aquela nudez macia recordou-o de um jogo erótico com a mulher, que
uns anos antes acrescentara um pico de excitação ao momento. «Quem
sabe se com ovos batidos…»
Por fim, misturados todos os ingredientes nas quantidades intuídas,
o bolo, polvilhado
com uma última capa de farinha, rotundo, alvo e sensual como nádega
de mulher, foi acomodado a um lado por Dona Rosália, coberto com
panos e um cobertor, para manter a tepidez necessária para a massa
levedar. Por baixo da masseira, uma braseira acesa.
A
irmã de Vanda e o marido só chegaram depois de almoço. Roberto
gostava deles, por razões diversas: Miguel era um companheirão,
sempre disponível para uma piada picante; Cláudia, um doce.
Ao
fim da tarde, com a massa das filhós quase a transbordar da
masseira, reuniram-se todos na cozinha velha ― um espaço que
mantinha uma lareira antiga
semicoberta por uma chaminé de grande tiragem. Na pedra do lar,
vários cavacos acesos a aquecer uma caldeira de cobre, meia de óleo,
sobre uma trempe.
Curioso
por experimentar,
Roberto ofereceu-se para tender as filhós. Sentado num banquinho
baixo perto da caldeira, com uma tábua de cozinha sobre os joelhos,
separava um punhado de massa, de um alguidar para onde tinha sido
transferida, rolava-o nas mãos a formar uma bola e esticava-o com os
dedos sobre a tábua até conseguir obter um círculo de uma grossura
uniforme de um dedo e um palmo de largura. Então, com uma carretilha em ziguezague, como era tradição, aplicava ao interior uns cortes, para uma fritura eficaz, e largava a filhó suavemente no óleo fervente. Do outro lado do alguidar, a cunhada também tendia. Miguel
com um espeto geria a fritura e tirava do óleo as filhós já
fritas. Vanda distribuía-as por cestinhos e caixas, enquanto Dona
Rosália as polvilhava com açúcar e mantinha as crianças longe do
lume e do óleo quente, deixando-as também pôr o açúcar. O Senhor
José, o patriarca, ia administrando o fluxo de lenha, para manter
uma chama contínua, mas não excessiva.
O
primeiro contacto de Roberto com a massa foi de surpresa. Não estava
habituado àquela deliquescência oleosa e a sensação de mãos
sujas retraiu-o. A maleabilidade sugestiva foi a primeira sensação
estimulante. Depois, a textura e a densidade carnais tomaram conta
dos seus sentidos. A massa macia e moldável transmitia às
terminações nervosas das suas mãos sensações de grande carga
sensual. A ilusão de tocar e manipular partes de um corpo feminino
era muito real e perturbadora. Como bola, a massa dava a ilusão de
seio, macio e deformável; como superfície, lembrava pescoço,
barriga, interior de coxa. Os sentidos sabiam-se enganados, mas
rejubilavam, contentes
e subconscientes.
Enquanto
manipulava a bola de massa entre as mãos, permitiu-se imaginar que
metia as mãos por dentro das roupas da cunhada, ali mesmo ao lado, e
tocava, agarrava, apertava-lhe os seios, fiado na incapacidade de ela
e os circunstantes lerem o pensamento. Esta impunidade furtiva
acrescentava um patamar de excitação ao seu desatino. Alguma coisa
no seu corpo se inteiriçou. Felizmente, a tábua de estender as
filhós protegia-o de maiores embaraços.
As
pessoas não conseguem ler os pensamentos umas das outras, mas estão
muito habituadas a ler os pequenos sinais da linguagem corporal.
Talvez o cunhado de Roberto lhe tivesse notado a respiração mais
apressada ou algum esgar mais libidinoso no rosto, ou talvez já
conhecesse as delícias da manipulação da massa. Ao vê-lo
entretido com a bola de massa entre mãos, provocou, irónico e
risonho:
― Essas
são boas, mas eu gosto mais das outras!
Roberto
sentiu-se corar, mas logo resolveu assumir:
― Claro,
as outras é que enchem a alma. Mas mais vale uma destas na mão que
duas das outras... na caixa… ― concluiu, rindo.
Todos
pareceram perceber e riram animadamente, exceto as crianças, sempre
atentas:
― Eu
também quero das outras ― clamaram ambas.
― Ah,
vocês querem das outras filhós com aguardente? Ainda não têm
idade ― trapaceou Dona Rosália. ― Mas arranjo-vos algumas com
canela.
Estava
lançada a brincadeira brejeira. Pouco depois, Cláudia, com uma
expressão maliciosa, produzia um rolo com a massa, em vez de uma
bola. As chalaças marotas não se fizeram esperar, a que não faltou
a clássica demonstração da flacidez, sempre risível, que a massa
ilustrava na perfeição.
― Esta
não vai lá, nem que lhe mostre as amígdalas ― gracejava,
enquanto suspendia o pedaço cilíndrico de massa sobre a boca
aberta.
― Então,
meninos! Hoje é noite de Natal… ― reclamava a matriarca, pouco
à-vontade com tanta brejeirice à frente dos genros e das crianças.
Mas
o ambiente era de pândega descontraída. Roberto prosseguiu,
sugerindo carícias preliminares, ao estender as filhós. A frequente
necessidade de abrandar a massa, molhando as pontas dos dedos em
azeite, acrescentava realismo às manobras lascivas. Em crescendo,
encontrou relações sugestivas entre os cortes da carretilha e alguns
aspetos da anatomia íntima feminina:
― Esta
tem os lábios em ziguezague. Se calhar, dá dentadas. Agora, morde;
agora grita! Agora, morde; agora grita... ― ria, visivelmente
divertido, espicaçando o cunhado.
― Mostra,
tio, mostra! ― pediam as crianças, curiosas.
Roberto
correspondeu, mimando uma bocarra, com a filhó aberta a meio:
― Fujam,
que esta é das famintas e vai-vos comer!
Miguel,
entretanto, aceitou o repto malicioso de há pouco, retirando da
caldeira uma filhó suspensa do espeto pela “anatomia íntima”.
― Esta
até ficou tesa, quando viu um espeto de meio metro!
A
brincadeira e a correspondente risota prosseguiram até que a massa
no alguidar se esgotou. Era a altura de lavar e arrumar tudo e de
saborear as filhós com calma, acompanhadas de jeropiga. Depois do
bacalhau e das couves do jantar, foram ver a fogueira ao largo da
igreja e voltaram para distribuir as prendas,
pois já ninguém
aguentava as crianças. Antes do deitar, aconchegaram o estômago com
mais umas filhós e uns copinhos de jeropiga. Era um remate perfeito.
O
patriarca da família estava intimamente feliz. Não era todos os
anos que conseguia ter toda a família junta. Já deitado, percebeu
gemidos abafados vindos de dois pontos distintos do casarão
familiar. Música para os seus ouvidos. Chegou-se a Dona Rosália,
amoroso, insinuante, atiçado.
― O
que é que te deu hoje, Zé? ― fingiu reclamar ela.
― Acho
que é das filhós! ― sussurrou vaidoso, mentindo com toda a
sonsice que a ocasião exigia. ―
As tuas são as melhores ― acrescentou, fazendo
deslizar os dedos ávidos pelas sinuosidades da massa que tão bem
conhecia, pronta a ser amassada.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Moniz Pereira (1920–1989) [pintor; cenógrafo na RTP], [Título
temporariamente desconhecido],
1980.
Sindicato
dos Trabalhadores das Telecomunicações, Lisboa.
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(Este
conto integra a coletânea, coordenada por Isidro Sousa, Boas
Festas — Antologia de Natal,
Silkskin Editora, Lisboa, 2015.)
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2 comentários:
Não te conhecia essa veia brejeira,mas fica-te bem.
Brejeira, mas sublimada…
Obrigado!
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