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sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Kuhn mastigado


A imagem que a ciência fornece de si própria é a de uma comunidade de investigadores teóricos e técnicos empenhada numa persistente exploração do mundo, em todos os seus aspetos, acumulando mais conhecimento ao que as gerações de investigadores anteriores legaram, aproximando-se paulatina mas inexoravelmente de desvendar os segredos últimos do universo. Thomas Kuhn (1922–1966), um ex-físico teórico, veio agitar esta imagem com a sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962, na qual propôs a seguinte tese genérica:

— a atividade da ciência normal consiste na resolução de enigmas, confirmando a concordância dos factos com a teoria, no âmbito de um determinado paradigma seguido pela comunidade de cientistas dessa área;
— quando o número ou a importância das anomalias, nos resultados esperados, tornam o paradigma insustentável, abre-se uma crise no seio da comunidade;
— desencadeia-se, então, uma revolução científica que traz novas teorias e práticas científicas, configurando um novo paradigma;
— aceite o novo paradigma pela comunidade científica, dissimula-se o antigo e entra-se num novo período de ciência normal.

Esse texto — pelo que tem de perturbação da tradicional imagem da ciência, sobretudo a do seu pretenso carácter cumulativo — tem ocupado, desde então, o centro das discussões sobre a capacidade da ciência aceder ao conhecimento e sobre a validade do que é tomado como verdadeiro.

Período pré-paradigmático
Na fase primitiva do desenvolvimento de uma ciência, quando ela se constitui como disciplina independente, geralmente, autonomizando-se em relação a um complexo mais vasto de áreas de conhecimento, é frequente que várias conceções de natureza estejam em competição, tentando ganhar primazia na resolução dos problemas que a comunidade científica da área considera mais importantes. A amplitude do campo de estudos é grande; inversamente, a precisão ainda é muito reduzida. Olha-se para um mesmo fenómeno e descreve-se de maneiras diferentes. «Na ausência de um paradigma, todos os factos que possivelmente são pertinentes ao desenvolvimento de determinada ciência têm a probabilidade de parecerem igualmente relevantes», pelo que as primeiras recolhas de factos aproximam-se de uma atividade ao acaso. (Kuhn) Sendo baixa a clareza na explicitação da teoria e pouco rigorosos os procedimentos metodológicos, cada escola não consegue impor-se às outras, nem constituir um paradigma. Aliás, os debates a respeito de métodos, problemas e soluções servem mais para definir escolas do que para gerar acordos. Por não existir um consenso do conjunto de pré-cientistas num corpo de crenças, cada um sente-se forçado a construir o seu campo de estudos, desde os fundamentos. Nessa fase, os pré-paradigmas não excluem os concorrentes — não conseguem —, como acontecerá mais tarde, quando um deles atingir o estatuto de paradigma.
Então, uma das escolas pré-paradigmáticas ganha ascendente, por enfatizar apenas parte do corpo de estudos ou por ser mais convincente, sobretudo por as suas teorias parecerem melhores do que as competidoras, mesmo que deixe por explicar alguns factos dos que estão em controvérsia. As escolas concorrentes desaparecem, quer pela conversão dos cientistas ao paradigma triunfante, quer pela marginalização dos defensores de teorias vencidas, mas que se mantêm irredutíveis.

Paradigma
Paradigma é o conceito central da tese de Kuhn; é o conjunto inextricável de teorias, leis, aplicações, procedimentos e dispositivos utilizados por uma determinada disciplina. Constitui-se através do sucesso em uma ou várias descobertas científicas que a respetiva comunidade científica considera suficientes como base para outros trabalhos. Representa um consenso em relação ao âmbito e à prática de uma ciência: os seus cientistas obedecem às mesmas regras e normas. A vantagem que um ganha sobre outro é, sobretudo, promessa de sucesso, mais que eficácia comprovada, seja «a análise aristotélica do movimento, os cálculos ptolomaicos das posições planetárias, o emprego da balança por Lavoisier ou a matematização do campo eletromagnético por Maxwell». (Kuhn) Fornece problemas e soluções modelares e promete uma previsibilidade genérica de resultados, no âmbito dessa ciência. Cada sucesso confere maior certeza ao paradigma e dá alento para o testar num âmbito mais amplo, mas sempre dentro dos pressupostos das teorias e procedimentos aceites.
O paradigma é o modelo pelo qual se rege a ciência normal, a que atingiu o estado de tradição coerente, isto é, um nível de confiança nos resultados e de autoconfiança na capacidade de encontrar soluções para os problemas futuramente levantados. Esse bloco coerente de uma determinada ciência é sintetizado pelos historiadores com nomes como Astronomia Ptolomaica, Dinâmica Newtoniana, Ótica Corpuscular. Através do comprometimento com o paradigma, os cientistas resolvem «problemas que mal poderiam ter imaginado e cuja solução nunca teriam empreendido.» (Kuhn)
A sua existência é uma realidade; basta constatar que, nas ciências humanas, «um mesmo comportamento é explicado segundo princípios diferentes pela sociologia, pelas neurociências, pela economia, pela psicologia ou pela sociologia cognitivista.» (Boudon)
O paradigma é o universo teórico e prático que o estudante encontra nos manuais em que se prepara para vir a ser um cientista. O modelo, bem estruturado, dessa fatia de mundo, permite-lhe concentrar-se no seu estudo, aprofundar uma determinada área, com a segurança de conceitos que o paradigma lhe fornece, sem ter de confirmar cada um dos seus pressupostos. Pode iniciar as suas pesquisas no ponto em que o manual se interrompe. Não precisará de as incorporar em obras genéricas, em que cada passo tivesse que ser explicado. Serão, habitualmente, artigos dirigidos aos pares, pessoas que conhecem o paradigma e têm facilidade em mergulhar nos seus aspetos mais esotéricos.

Ciência normal
A atividade da ciência normal consiste na resolução de enigmas, conforme dito atrás, no contexto de um determinado paradigma. Parte do pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o mundo. Intenta forçar a natureza a encaixar-se nos limites preestabelecidos pelo paradigma. Todos os campos que o extravasem são ignorados e qualquer anomalia de resultados que surja no âmbito da resolução ordinária de enigmas é tratada com desconfiança e animosidade. Não tem por objetivo descobrir novos factos, nem inventar novas teorias. Aliás, os cientistas são, geralmente, intolerantes em relação a novas teorias inventadas por outros.
Os enigmas são os problemas previstos no paradigma que gere o seu funcionamento. Nunca se percorrem caminhos investigatórios que não estejam inscritos no “mapa” fornecido pelo paradigma. «Uma das razões pelas quais a ciência normal parece progredir tão rapidamente é a de que os seus praticantes concentram-se em problemas que somente a sua falta de engenho pode impedir de resolver.» (Kuhn) Fundamentalmente, trata-se de confirmar que os factos concordam com a teoria seguida. Cada quebra-cabeças resolvido não constitui uma surpresa, pelo contrário, é esperado, porque a adoção de um paradigma lega um critério de escolha de problemas com solução assegurada.
Embora os resultados possam ser antecipados com alguma certeza, a maneira instrumental, concetual e matemática de alcançar esse resultado é o quebra-cabeças que constitui grande parte da motivação e do fascínio sentido pelo cientista. (Kuhn) «O que o incita ao trabalho é a convicção de que, se for suficientemente habilidoso, conseguirá solucionar um quebra-cabeças que ninguém, até então, resolveu ou, pelo menos, não resolveu tão bem.» (Kuhn) Não se trata exatamente de um passatempo, porque existem outras motivações envolvidas — desejo de ser útil, esperança de encontrar ordem, excitação da exploração de um novo território — e os resultados são aproveitados e utilizados na produção científica e industrial.
Ao produzir resultados previstos pelo paradigma, este torna-se mais fiável e “verdadeiro” aos olhos dos investigadores. Paradigma e ciência normal são conceitos que se apoiam mutuamente. O que se perde em criatividade ganha-se em profundidade e precisão, porque sendo o âmbito de cada paradigma muito limitado, favorece-se a investigação exaustiva, intensa e rigorosa dessa fatia de mundo. No entanto, segundo Michael Polanyi, «o êxito do cientista depende, em grande parte, de um tipo de conhecimento particular, os conhecimentos tácitos, que se adquirem pelo exercício prático, não pela explicitação teórica.» Estes, referenciais do intelecto obtidos da experiência, mas pessoais e dificilmente transmissíveis, servem de modelos de comparação às associações que estão na base do fenómeno da intuição, cujo processo, mantendo-se obscuro, ganha vivacidade e prodigalidade através do empenhamento num trabalho de aproximação, meditação e indagação exaustiva do problema. «O caminho que leva do estímulo à sensação é parcialmente determinado pela educação.» (Kuhn)

Anomalias
Embora a ciência normal não procure novos factos ou novas teorias, eles surgem, no contexto da heterogeneidade de procedimentos e equipamentos exigida para a solução dos quebra-cabeças. Aliás, a ciência normal, com o seu rigor de procedimentos e medida de resultados, é uma excelente detetora de anomalias. São descobertas que manifestam que a natureza violou as expectativas prometidas pelo paradigma. O seu traço característico é a recusa a serem assimiladas aos paradigmas existentes. Tais factos anómalos introduzem uma primeira perturbação na tradição dessa ciência, que, geralmente, começa por negá-los ou tirar-lhes importância.
Confirmada a anomalia, a comunidade cientifica ganha consciência da insuficiência do paradigma e empreende uma exploração intensiva do domínio em que ela foi detetada. Podem surgir novas teorias. Eventualmente, a anomalia não será muito profunda e será possível reajustar o paradigma de modo a englobar a previsão do fenómeno anómalo. No entanto, nem sempre é possível alterar o paradigma de maneira a poder conter o dito fenómeno inesperado. Por vezes, a importância da anomalia, o número de anomalias, ou a sua resistência às soluções são tais que põem em causa a credibilidade e a eficiência do paradigma para continuar a modelar a atividade científica dessa área, pelo que se abre uma crise.

Crise
Num período de crise de paradigma, existe muita controvérsia acerca do paradigma e da anomalia que o pôs em causa. Numa primeira fase, os cientistas têm a tendência para cerrar fileiras na defesa do paradigma em que se movem. Diminui a confiança, devido ao fracasso de os quebra-cabeças darem os resultados previstos na área da anomalia. A sensação de fracasso pode ser tanto mais intensa quanto se pensasse ter resolvido ou estar prestes a resolver alguns quebra-cabeças importantes. A frustração advém de que não se trata de refazer cálculos ou ser rigoroso nos procedimentos, mas de que se está no limiar da desconfirmação total.
Aos poucos, muitos cientistas vão-se afastando do paradigma, embora nenhum paradigma seja abandonado enquanto não existir outro que o substitua. A ciência, de normal, passa a extraordinária. Concentram-se esforços na resolução da anomalia, afrouxando a fixidez das regras recomendadas e buscando soluções com recurso até a áreas externas, e às vezes afastadas, da disciplina em causa, nomeadamente a Filosofia. A solução pode já ter sido entrevista no passado, só que num período em que a ciência não estava em crise, pelo que a solução foi ignorada.
Eventualmente, a ciência conseguirá voltar à normalidade anterior, quer conseguindo eliminar a anomalia, quer isolando-a, mas, não o conseguindo, acabará por surgir uma nova teoria com pretensões paradigmáticas.
A crise é fundamental à emergência de nova teoria. Esta é uma teoria que necessariamente engloba e explica a anomalia que deu origem à crise.
Assimilada a descoberta, os cientistas podem dar-se conta de um maior número de fenómenos ou explicar com mais rigor alguns já conhecidos. Isso é devido a serem descartados procedimentos e crenças aceites anteriormente.

Revolução científica
O novo paradigma não surge de uma acumulação de conhecimento baseado no velho paradigma. Afirma-se como completamente novo e vem alterar profundamente e reorganizar o domínio da ciência em questão, pelo que é apropriado chamar revolução científica a este processo, associando-o aos períodos de reorganização social profunda. Dá-se uma desintegração da tradição desenvolvida pela ciência normal. Aumenta a insegurança. Muitos cientistas veem mudar as regras que regiam a sua prática, alguns veem postos em causa os pressupostos dos trabalhos em curso ou mesmo concluídos. Não se trata de acrescentar uma adenda, mas de reavaliar os factos em que se basearam.
Nem sempre uma nova teoria entra em confronto com qualquer anterior; pode referir-se a fenómenos desconhecidos, até aí, como a teoria quântica, ou ser mais abrangente, como a teoria da conservação da energia, e englobar outras de nível inferior, que não são alteradas.
A solução que dá origem a um novo paradigma pode surgir como uma iluminação repentina, como se, de repente, caíssem as vendas que os cientistas usavam. Não é correto falar-se de interpretação, mas de fulguração intuitiva. Alguma conexão neuronal é estabelecida, alguma associação inconsciente dá frutos. Para exemplificar a maneira diferente como os cientistas percebem o mesmo fenómeno que miravam antes, e agora veem como algo diferente, Kuhn fala dos testes Gestalt, em que, num dado momento, por exemplo, se vê um pato e, no momento seguinte, salta à vista a forma de um coelho, no mesmo desenho, com os mesmos traços. O cientista do novo paradigma passa a ver, por exemplo, a Terra a girar em torno do Sol, quando antes só conseguia ver o Sol a girar em torno da Terra. A alteração é tal que até a parafernália instrumental se altera, para dar resposta aos novos problemas, e até as perguntas que se põem aos fenómenos são diferentes. Não só o novo paradigma explica e dá solução a mais problemas, como se manifesta inconciliável com o antigo. Kuhn fala mesmo de incomensurabilidade, uma impossibilidade de usar a mesma medida para ambos, como num elefante e num sonho.

Regresso à ciência normal
Instalando-se o novo paradigma, sucede algo semelhante ao que sucedeu aquando da formação de cada ciência: o novo paradigma vai ganhando adeptos, enquanto o velho os perde. A conquista de aderentes, no entanto, não é instantânea e fulminante; eles vão-se aproximando num processo que deve muito à persuasão e à sedução, mas, como os paradigmas são incompatíveis, não se pode ficar a meio-caminho, pelo que a adesão ao novo tem um caráter semelhante ao da conversão religiosa. O paradigma antigo, por outro lado, mantém defensores irredutíveis, mas que vão sendo excluídos do sistema — são ignorados e os seus trabalhos rejeitados. Gradualmente, multiplica-se o número de experiências, de instrumentos, de livros baseados no novo paradigma.
Um aspeto importante relacionado com o regresso ao funcionamento normal da ciência é o dos manuais pelos quais aprendem os novos cientistas. Cada nova revolução científica obriga à sua atualização, fazendo-se esta pela dissimulação dos aspetos parcelares da história que conduziram ao antigo paradigma e até da existência de revoluções precedentes. Os cientistas não dispõem de um equivalente ao museu de arte, de que os artistas dispõem. O novo paradigma é apresentado como se toda a história anterior dessa ciência fosse um caminhar inexorável na sua direção, como se o conhecimento tivesse sido cumulativo. Ora, o que Kuhn vem mostrar é que as revoluções científicas introduzem mudanças de direção da ciência e que os vários paradigmas que a sua história viveu são patamares que pouco têm que ver uns com os outros e são, muitas vezes, totalmente incompatíveis. Os novos cientistas, assim industriados, tornam-se eficazes a lidar com os problemas do novo paradigma, mas ignoram essas tergiversações do percurso da sua ciência, vendo-se como alpinistas que contemplam e dominam a paisagem circundante, como se fossem continuadores de antigos alpinistas que escalaram os primeiros contrafortes dessa montanha, quando, na coerência da metáfora, escalaram e atingiram o topo de outra montanha afastada desta.
A ciência progride, sim, no sentido de evolução, tanto na fase normal, em que é cumulativa, como, principalmente, na fase extraordinária, o que não significa que se aproxima mais da verdade. Sobretudo, não se pode dizer que tenha um fim. À maneira do que acontece com os organismos vivos, que Darwin interpretou, as revoluções científicas são como que as mutações que habilitam as ciências com vantagens adaptativas, em relação ao período regido pelo paradigma anterior. Aumenta a precisão e a especialização, mas todo o processo não se orienta «para um fim preciso, para uma verdade científica fixada e permanente». Cada geração preocupou-se com os problemas próprios, como a atual se preocupa com os seus, mas uns não se encadeiam nos outros, nem há um fim definido, uma teleologia das ciências. (Kuhn)

Relativismo
Estas asserções da obra de Kuhn ressumam relativismo. O relativismo questiona a possibilidade de o conhecimento aceder ao real. Kuhn, negando que haja conhecimento cumulativo e aproximação à verdade, alimenta a tese relativista. O relativismo existiu em todas as épocas, mas é paradoxal que se afirme numa época de inúmeros sucessos das ciências. O que o impede que trave o desenvolvimento das ciências?
Kuhn afirma que cientistas de paradigmas diferentes vivem em “mundos diferentes”, falam “línguas” diferentes, pelo que é impossível qualquer diálogo. Embora tal entendimento pudesse conduzir à conclusão relativista de que ambos os grupos pudessem estar certos, Kuhn rejeita as críticas de relativismo, argumentando que os cientistas são uma comunidade muito especial, cujo trabalho é formular e resolver quebra-cabeças, apoiados, às vezes, em indícios muito ténues mas reais. Entre dois paradigmas consecutivos, é-lhes fácil determinar que o mais recente tem predicados de maior precisão nas predições, especialmente quantitativas, e um maior número de problemas resolvidos. «As teorias científicas mais recentes são melhores que as mais antigas, no que toca à resolução de quebra-cabeças nos contextos frequentemente diferentes aos quais são aplicadas.» Kuhn diz que esta não é uma posição relativista e revela que é um crente convicto no progresso científico.
Em relação à maior ou menor cientificidade, também Kant quis dizer, segundo Boudon, que «não existe um conjunto finito de critérios que, como uma checklist, possa ser aplicado para determinar se uma teoria é verdadeira. Em contrapartida, é possível, em muitos casos, decidir com certeza a favor de uma teoria contra outra. É por ser possível determinar com base em razões sólidas se devemos preferir uma teoria a outra que certas teorias desaparecem irreversivelmente em benefício de outras».

Conclusão
Thomas Kuhn, ao lançar em 1962 a obra A Estrutura das Revoluções Científicas, desencadeou, ele próprio, uma revolução na maneira como é entendido o desenvolvimento das ciências. Define uma imagem de cientista um pouco frívola, como alguém que se ocupa a resolver quebra-cabeças científicos, não procurando descobrir nada de verdadeiramente novo. Este panorama de falta de ambição descobridora só é perturbado quando os quebra-cabeças não dão os resultados esperados e mostram que há qualquer coisa de errado ou insuficiente na teoria. A crise assim desencadeada conduzirá, inevitavelmente, a uma revolução que alterará de alto a baixo o conjunto de teorias e procedimentos dessa ciência — aquilo a que Kuhn chama paradigma. O panorama que emerge dessa revolução é radicalmente diferente e incompatível com o anterior.
A tese de Kuhn tem a virtualidade de conter, ela própria, algo de paradigmático: pode ser aplicada a múltiplos aspetos da vida, da economia às ideias políticas. No entanto, não se aplica convenientemente à Filosofia, às artes, à Literatura, por serem refratárias a conformações paradigmáticas.
Apesar das críticas, a tese ainda não foi posta em causa por nenhuma “anomalia” grave, funcionando os seus radicais seguidores como ciosos defensores do paradigma, advogando que não há ciência sem pressupostos radicados em paixões e crenças e indo ao ponto de dizer que as teorias científicas podem não ter mais objetividade e garantia do que as mitologias.

Bibliografia
BOUDON, Raymond, «O Relativismo Cognitivo», in O Relativismo, Lisboa, Gradiva, 2008, pp. 25–35.
CARRILHO, Manuel Maria, «Kuhn e as Revoluções Científicas», in Colóquio – Ciências, N. 2, Lisboa, Jun. 1988, pp. 43–52.
FEYERABEND, Paul, «O Adeus à Razão», in Adeus à Razão, Lisboa, Edições 70, 1991, pp. 327–333.
KUHN, Thomas, A Estrutura das Revoluções Científicas, São Paulo, Perspectiva, [1990].
RORTY, Richard, «Pragmatismo como Anti-representacionismo», in John Murphy, O Pragmatismo: de Pierce a Davidson, Porto, Edições ASA, 1993, pp. 7–13.
SOARES, Maria Luísa Couto, «Teorias da Verdade», in O que é o Conhecimento?: Introdução à Epistemologia, Porto, Campo das Letras, 2004, pp. 199–223.

Joaquim Bispo
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Imagem: Jean-Léon Huens, Galileu explicando a topografia da Lua a céticos, National Geographic Society, c. 1974.
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