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terça-feira, 25 de outubro de 2016

O Mestre


No dia em que comerdes desse fruto,
se abrirão os vossos olhos;
e sereis como deuses,
conhecendo o bem e o mal.
Gn 3,5

Professor, quando é que nos mostra as suas últimas pinturas? ― lançou Gisela, juvenilmente provocadora.
Não as trago para a faculdade, Gisela, que são muito grandes ― gracejou o professor de Pintura III ―, mas terei muito gosto em mostrá-las no ateliê da minha casa de Sintra.
Tinha uma daquelas figuras tutelares que impressionam algumas alunas ― sobre o alto, barba, cabelo grisalho farto e um pouco revolto ― e, sobretudo, dava gosto ouvir as suas aulas. Fora da sala, adornava-lhe as mãos ou o queixo um cachimbo, donde se escapava um aroma de tabaco Mayflower.
E quando é que o professor lá está a pintar? ― avançou a aluna, interessada.
Aproveito todas as tardes de sábado. Apareça! A morada vem na lista ― disse o professor, a despachar.
Então, posso lá passar no próximo sábado, com o meu namorado? Ele também gosta muito de pintura. É de História d’Arte.
Com certeza, Gisela. Terei muito prazer em vos receber. Até lá!

*
O mestre já tinha esquecido a promessa da aluna, quando ouviu a campainha.
Entrem! ― convidou. ― Sejam muito bem-vindos.
É o Januário, o meu namorado; Jorge Ávila, o meu professor de Pintura ― apresentou, Gisela. ― Estou um pouco emocionada. Visitar o ateliê de um pintor como o senhor!
Cumprimentos feitos, Ávila levou os convidados a visitar o pequeno pavilhão onde pintava e lhe servia de armazém.
Aqui já não tenho nenhuma das minhas obras mais antigas. Iam beber bastante ao neorrealismo.
Nós conhecemos, professor. Estão em todas as obras de referência da pintura do século XX.
Depois vieram essas, com influências das colagens de Matisse; e estas, em cujos traços marotos se adivinha alguma inspiração na fase “minotauromáquica” de Picasso, não acham? Não que eu o reconheça, oficialmente ― ironizava o pintor, rindo.
Gosto mais das suas, professor, talvez por serem mais esquemáticas ― avaliava Gisela, em tom aprovador. ― O Picasso é demasiado explícito para o meu gosto.
Olha aquela, Gisela! ― Divertido, Januário apontava para uma tela, onde era evidente um coito sobre um fundo de linhas de projeto de arquitetura.
Nesta zona ― continuou Ávila ― estão as poucas que restaram da fase neoexpressionista, baseada na mancha e na gestualidade da pincelada. A partir daqui, são coisas muito recentes, quase todas neofigurativas.
Tanto nu, professor!
O nu transmite mais facilmente a essência do Homem ainda não contaminado pela civilização. Além disso, a roupa fixa uma época à cena e impede que a sua mensagem seja vista como um valor intemporal.
Aquela paisagem no cavalete é no que está a trabalhar?
Sim, é um esboço de fundo de Éden para uma série sobre a Criação ― uma encomenda de um particular. Nesta tela, em especial, vou representar Adão e Eva, no momento exato em que Eva já deu uma dentada na maçã e Adão inicia a primeira dentada, isto é, o instante em que “toda a humanidade” acede ao conhecimento que lhe estava vedado ― um momento muito especial. A Gisela é que faria uma excelente Eva ― o cabelo liso, comprido e louro, os olhos azuis, um certo ar de pureza primordial.
Fazer de modelo para si?... ― O tom de suave crítica não evitou um lampejo no olhar de Gisela.
Não me interprete mal. Eu só estava a fazer uma avaliação de conformidade estética. Longe de mim pedir-lhe que pose para mim.
Quanto tempo é que demora a pintar uma tela deste tamanho?
Espero acabá-la em duas ou três tardes de sábado.
Mas, tinha de me despir, não?
Claro, é a Eva; mas os olhos de um artista são como os de um médico ― seletivamente focados nas questões técnicas. O que avaliam são perspetivas, linhas de contorno, sombras, tonalidades cromáticas. Mas não quero que se sinta pressionada.
O que achas, Januário? ― perguntou Gisela ao namorado.
Se te sentes à vontade…
Eu estou muito segura do meu corpo e, às vezes, tenho fantasias de posar para um grande artista, cujo nome e mestria valorizassem o modelo. Achava piada dar comigo, um dia, na exposição de uma grande galeria.
O Januário não quer experimentar, também? ― perguntou o pintor. ― Eu preciso de um Adão, e o seu perfil adequa-se ao que eu procuro ― cabelo preto, que podemos desgrenhar um pouco, barba… Deixe-a crescer mais!
Eu? ― surpreendeu-se Januário. ― Eu não sei se tenho coragem.
Não custa nada, é como estar numa praia de nudistas. E ainda ganham uns trocos para a discoteca. A tabela! Mas, como disse à Gisela, estejam à vontade para recusar. Não ficarei contrariado se optarem por não posar para mim. Eu sou pela transparência de processos e pela liberdade de decisão.
Com tal franqueza, os jovens não recearam experimentar uma atividade que, pela peculiaridade e pela aura cultural, os entusiasmava interiormente. Começaram nesse mesmo dia. O pintor colocou-os na posição pretendida: Eva, à direita, estendia o braço e oferecia uma maçã, já mordida, à boca de Adão, que esticava o rosto e lhe ferrava os dentes. O seio direito de Eva mostrava-se generosamente exposto envolvido pelos cabelos; o esquerdo deixava transparecer apenas a sombra rosada da aréola encimada pelo mamilo. Os sexos estavam patentes na sua candura virginal. A cena ressumava uma sensualidade imaculada.

*
No sábado seguinte, o casal chegou cedo e autoconfiante. Tinha gostado da experiência, porque a incomodidade própria da exposição fora atenuada com duas paragens para chá e torradas, em que se trocaram ideias sobre questões de verdade e representação. Surpreenderam-se de encontrar na tela o rosto de Ávila, pintado como Deus, no limiar do jardim do Éden.
Por definição, Deus está presente, embora não seja visto ― explicou o pintor. ― Sabe o que vai acontecer, ou não conhecesse Ele a natureza humana, que espicaçou com a proibição de comer daquele fruto.
A pintura ia adiantada. Acreditava-se que podia ser acabada ainda nesse dia. No regresso do primeiro intervalo, porém, Ávila deu sinais de incomodidade. Soltava monossílabos em surdina e fazia alguns curtos gestos de impaciência.
Algum problema, professor? ― perguntou Gisela, a quem não escapara a perturbação do pintor.
Eu devia ter previsto isto. Não consigo obter o efeito que quero.
Quer que corrijamos alguma posição?
Não, estão muito bem. Esqueçam! Acho que esta pintura não se vai concluir. Eu já sabia!
Não diga isso, professor! Há alguma coisa que possamos fazer?
Poder, podem, mas eu não me atrevo, sequer, a falar nisso. Esqueçam! Vamos terminar.
Diga o que precisa, professor, seja o que for. Sem saber é que não podemos ajudá-lo.
Não, não! É impensável. O que eu precisava é que Eva tivesse um orgasmo comigo.
Gisela e Januário entreolharam-se silenciosos. O pintor continuou:
Pronto, já disse, mas não é um pedido, muito menos uma proposta. Aliás, estou envergonhadíssimo. Desculpem! Acabou. Vamos ficar por aqui.
Ao fim de uns momentos, Gisela quebrou o silêncio só matizado com os sons de Ávila a arrumar os acrílicos e a lavar os pincéis:
Importava-se de explicar, professor?
A questão é de autenticidade, do brilho no olhar, que só se consegue com uma condição física específica, a da excitação sexual orgástica ― começou o mestre, após alguns momentos. ― Eva soube que a maçã era boa, acabou de experimentar esse prazer. O seu rosto deve refletir esse entusiasmo, um empolgamento que convença o seu companheiro. Adão deve ver no olhar de Eva algo melhor do que o Paraíso. Isso deve transparecer no quadro. Eu preciso de apreender esse brilho, essa centelha de divino que se desprende da alma e brota no olhar, no momento do delírio orgástico. E não o posso apreender, na sua incomensurabilidade, se não estiver, eu próprio, a viver em comunhão essa emoção que nos liga ao supra-humano. A sua compreensão é da área do sensível e não do racional. Se não conseguir transmitir para a tela a transcendência do desejo no seu auge, a banalidade da obra está garantida. Não vou mostrá-la.
O mestre calou-se, preparando-se para arrumar a tela. Os jovens olhavam-no, como se esperassem alguma outra conclusão ou estivessem a processar o que tinham ouvido. Depois, Gisela aproximou-se do namorado e conferenciou com ele em surdina:
«O que é que achas? Parece-te sincero? O que havemos de fazer?»
«Não sei.»
«E se eu fosse para a cama com ele?»
«Não sei… Eras capaz?»
«Acho que sim. É apenas sexo… E tu, não te importas?»
«Hum! É chato! Mas o corpo é teu.»
«Não ficas zangado comigo?»
«Não... Vai lá.»
Comunicaram a decisão ao pintor que recebeu a informação com calma e sisudez. Voltou a colocar a tela no cavalete e pôs os materiais à mão. Ficou um momento a avaliar a tela, depois disse a Januário:
Relaxe um pouco que nós não demoramos. Se quiser, pode voltar a ensaiar a posição e focar-se mentalmente no ato de trincar a maçã.
Foi o que Januário fez. Nu, sozinho no ateliê, ferrou os dentes na maçã — ao de leve, saboreando, como quando se experimenta pela primeira vez —, tentando entrar no espírito da cena bíblica, anunciadora do conhecimento. Revelou-se-lhe, então, o perfeito simbolismo da maçã, ao ouvir, não distantes, os gemidos de prazer que Eva soltava.

Joaquim Bispo
* * *
Imagem: Lucas Cranach "o Velho", Adão e Eva, 1531.
Museus do Estado, Berlim.
*
(Este conto integra a coletânea, coordenada por Isidro Sousa, A Bíblia dos Pecadores — Do Génesis ao Apocalipse, EuEdito Edição de Autor, Vila Nova de Gaia, 2015.)
* * *



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4 comentários:

... Januário, otário, perdulário, deu a maçã ao salafrário.
"Sublimaçã" de artistas.
Maneldalcains

Eh, eh! Compreendo a tua revolta. O “conto do vigário” desta vez procurou outro tipo de benefícios.
Abraço!

Mais um que dá o ouro ao bandido,mas parece que a maçã também não era má .

Neste “filme”, teve de se contentar com a banda sonora.

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