No
dia em que comerdes desse fruto,
se
abrirão os vossos olhos;
e
sereis como deuses,
conhecendo
o bem e o mal.
Gn
3,5
― Professor,
quando é que nos mostra as
suas últimas pinturas? ― lançou Gisela, juvenilmente provocadora.
― Não
as trago para a faculdade, Gisela, que são muito grandes ―
gracejou o professor de Pintura III ―,
mas terei muito gosto em
mostrá-las no ateliê da minha casa de Sintra.
Tinha
uma daquelas figuras tutelares que impressionam algumas alunas ―
sobre o alto, barba, cabelo grisalho farto e um pouco revolto ― e,
sobretudo, dava gosto ouvir as suas aulas. Fora da sala, adornava-lhe
as mãos ou o queixo um cachimbo, donde se escapava um aroma de
tabaco Mayflower.
― E
quando é que o professor lá está a pintar? ― avançou a aluna,
interessada.
― Aproveito
todas as tardes de sábado. Apareça! A morada vem na lista ― disse
o professor, a despachar.
― Então,
posso lá passar no próximo sábado, com o meu namorado? Ele também
gosta muito de pintura. É de História d’Arte.
― Com
certeza, Gisela. Terei
muito prazer em vos receber. Até lá!
*
O
mestre já tinha esquecido a promessa da aluna, quando ouviu a
campainha.
― Entrem!
― convidou. ― Sejam muito bem-vindos.
― É
o Januário, o meu namorado; Jorge Ávila, o meu professor de Pintura
― apresentou, Gisela. ― Estou um pouco emocionada. Visitar o
ateliê de um pintor como o senhor!
Cumprimentos
feitos, Ávila levou os convidados a visitar o pequeno pavilhão onde
pintava e lhe servia de armazém.
― Aqui
já não tenho nenhuma das minhas obras mais antigas. Iam beber
bastante ao neorrealismo.
― Nós
conhecemos, professor. Estão em todas as obras de referência da
pintura do século XX.
― Depois
vieram essas, com influências das colagens de Matisse; e estas, em
cujos traços marotos se adivinha alguma inspiração na fase
“minotauromáquica” de Picasso, não acham? Não que eu o
reconheça, oficialmente ― ironizava o pintor, rindo.
― Gosto
mais das suas, professor, talvez por serem mais esquemáticas ―
avaliava Gisela, em tom aprovador. ― O Picasso é demasiado
explícito para o meu gosto.
― Olha
aquela, Gisela! ― Divertido, Januário apontava para uma tela, onde
era evidente um coito sobre um fundo de linhas de projeto de
arquitetura.
― Nesta
zona ― continuou Ávila ― estão as poucas que restaram da fase
neoexpressionista, baseada na mancha e na gestualidade da pincelada.
A partir daqui, são coisas muito recentes, quase todas
neofigurativas.
― Tanto
nu, professor!
― O
nu transmite mais facilmente a essência do Homem ainda não
contaminado pela civilização. Além disso, a roupa fixa uma época
à cena e impede que a sua mensagem seja vista como um valor
intemporal.
― Aquela
paisagem no cavalete é no que está a trabalhar?
― Sim,
é um esboço de fundo de Éden para uma série sobre a Criação ―
uma encomenda
de
um
particular. Nesta tela, em especial, vou representar Adão e Eva, no
momento exato em que Eva já deu uma dentada na maçã e Adão inicia
a primeira dentada, isto
é, o instante em que “toda a humanidade” acede ao conhecimento
que lhe estava vedado ― um momento muito especial. A Gisela é que
faria uma excelente Eva ― o cabelo liso, comprido e louro, os olhos
azuis, um certo ar de pureza primordial.
― Fazer
de modelo para si?... ― O tom de suave crítica não evitou um
lampejo no olhar de Gisela.
― Não
me interprete mal. Eu só estava a fazer uma avaliação de
conformidade estética. Longe de mim pedir-lhe que pose para mim.
― Quanto
tempo é que demora a pintar uma tela deste tamanho?
― Espero
acabá-la em duas ou três tardes de sábado.
― Mas,
tinha de me despir, não?
― Claro,
é a Eva; mas os olhos de um artista são como os de um médico ―
seletivamente focados nas questões técnicas. O que avaliam são
perspetivas, linhas de contorno, sombras, tonalidades cromáticas.
Mas não quero que se sinta pressionada.
― O
que achas, Januário? ― perguntou Gisela ao namorado.
― Se
te sentes à vontade…
― Eu
estou muito segura do meu corpo e, às vezes, tenho fantasias de
posar para um grande artista, cujo nome e mestria valorizassem o
modelo. Achava piada dar comigo, um dia, na exposição de uma grande
galeria.
― O
Januário não quer experimentar, também? ― perguntou o pintor. ―
Eu preciso de um Adão, e o seu perfil adequa-se ao que eu procuro ―
cabelo preto, que podemos desgrenhar um pouco, barba… Deixe-a
crescer mais!
― Eu?
― surpreendeu-se Januário. ― Eu não sei se tenho coragem.
― Não
custa nada, é como estar numa praia de nudistas. E ainda ganham uns
trocos para a discoteca. A tabela! Mas, como disse à Gisela, estejam
à vontade para recusar. Não ficarei contrariado se optarem por não
posar para mim. Eu sou pela transparência de processos e pela
liberdade de decisão.
Com
tal franqueza, os jovens não recearam experimentar uma atividade
que, pela peculiaridade e pela aura cultural, os entusiasmava
interiormente. Começaram nesse mesmo dia. O pintor colocou-os na
posição pretendida: Eva, à direita, estendia o braço e oferecia
uma maçã, já mordida, à boca de Adão, que esticava o rosto e lhe
ferrava os dentes. O seio direito de Eva mostrava-se generosamente
exposto envolvido pelos cabelos; o esquerdo deixava transparecer
apenas a sombra rosada da aréola encimada pelo mamilo. Os sexos
estavam patentes na sua candura virginal. A cena ressumava uma
sensualidade imaculada.
*
No
sábado seguinte, o casal chegou cedo e autoconfiante. Tinha gostado
da experiência, porque a incomodidade própria da exposição fora
atenuada com duas paragens para chá e torradas, em que se trocaram
ideias sobre questões de verdade e representação. Surpreenderam-se
de encontrar na tela o rosto de Ávila, pintado como Deus, no limiar
do jardim do Éden.
― Por
definição, Deus está presente, embora não seja visto ― explicou
o pintor. ― Sabe o que vai acontecer, ou não conhecesse Ele a
natureza humana, que espicaçou com a proibição de comer daquele
fruto.
A
pintura ia adiantada. Acreditava-se que podia ser acabada ainda nesse
dia. No regresso do primeiro intervalo, porém, Ávila deu sinais de
incomodidade. Soltava monossílabos em surdina e fazia alguns curtos
gestos de impaciência.
― Algum
problema, professor? ― perguntou Gisela, a quem não escapara a
perturbação do pintor.
― Eu
devia ter previsto isto. Não consigo obter o efeito que quero.
― Quer
que corrijamos alguma posição?
― Não,
estão muito bem. Esqueçam! Acho que esta pintura não se vai
concluir. Eu já sabia!
― Não
diga isso, professor! Há alguma coisa que possamos fazer?
― Poder,
podem, mas eu não me atrevo, sequer, a falar nisso. Esqueçam! Vamos
terminar.
― Diga
o que precisa, professor, seja o que for. Sem saber é que não
podemos ajudá-lo.
― Não,
não! É impensável. O que eu precisava é que Eva tivesse um
orgasmo comigo.
Gisela
e Januário entreolharam-se silenciosos. O pintor continuou:
― Pronto,
já disse, mas não é um pedido, muito menos uma proposta. Aliás,
estou envergonhadíssimo. Desculpem! Acabou. Vamos ficar por aqui.
Ao
fim de uns momentos, Gisela quebrou o silêncio só matizado com os
sons de Ávila a arrumar os acrílicos e a lavar os pincéis:
― Importava-se
de explicar, professor?
― A
questão é de autenticidade, do brilho no olhar, que só se consegue
com uma condição física específica, a da excitação sexual
orgástica ― começou o mestre, após alguns momentos. ― Eva
soube que a maçã era boa, acabou de experimentar esse prazer. O seu
rosto deve refletir esse entusiasmo, um empolgamento que convença o
seu companheiro. Adão deve ver no olhar de Eva algo melhor do que o
Paraíso. Isso deve transparecer no quadro. Eu preciso de apreender
esse brilho, essa centelha de divino que se desprende da alma e brota
no olhar, no momento do delírio orgástico. E não o posso
apreender, na sua incomensurabilidade, se não estiver, eu próprio,
a viver em comunhão essa emoção que nos liga ao supra-humano. A
sua compreensão é da área do sensível e não do racional. Se não
conseguir transmitir para a tela a transcendência do desejo no seu
auge, a banalidade da obra está garantida. Não vou mostrá-la.
O
mestre calou-se, preparando-se para arrumar a tela. Os jovens
olhavam-no, como se esperassem alguma outra conclusão ou estivessem
a processar o que tinham ouvido. Depois, Gisela aproximou-se do
namorado e conferenciou com ele em surdina:
«O
que é que achas? Parece-te sincero? O que havemos de fazer?»
«Não
sei.»
«E
se eu fosse para a cama com ele?»
«Não
sei… Eras capaz?»
«Acho
que sim. É apenas sexo… E tu, não te importas?»
«Hum!
É chato! Mas o corpo é teu.»
«Não
ficas zangado comigo?»
«Não...
Vai lá.»
Comunicaram
a decisão ao pintor que recebeu a informação com calma e sisudez.
Voltou a colocar a tela no cavalete e pôs os materiais à mão.
Ficou um momento a avaliar a tela, depois disse a Januário:
― Relaxe
um pouco que nós não demoramos. Se quiser, pode voltar a ensaiar a
posição e focar-se mentalmente no ato de trincar a maçã.
Foi
o que Januário fez. Nu, sozinho no ateliê, ferrou os dentes na maçã
— ao de leve, saboreando, como quando se experimenta pela primeira
vez —, tentando entrar no espírito da cena bíblica, anunciadora
do conhecimento. Revelou-se-lhe, então, o perfeito simbolismo da maçã, ao ouvir, não distantes, os gemidos de prazer que Eva soltava.
Joaquim
Bispo
*
* *
Imagem:
Lucas Cranach "o
Velho",
Adão
e Eva, 1531.
Museus
do Estado, Berlim.
*
(Este
conto integra a coletânea, coordenada
por Isidro Sousa, A Bíblia
dos Pecadores — Do Génesis ao Apocalipse,
EuEdito —
Edição de Autor,
Vila Nova de Gaia,
2015.)
*
* *
4 comentários:
... Januário, otário, perdulário, deu a maçã ao salafrário.
"Sublimaçã" de artistas.
Maneldalcains
Eh, eh! Compreendo a tua revolta. O “conto do vigário” desta vez procurou outro tipo de benefícios.
Abraço!
Mais um que dá o ouro ao bandido,mas parece que a maçã também não era má .
Neste “filme”, teve de se contentar com a banda sonora.
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