Ele
tinha-lhe trazido um pacote de cerejas.
Um
pacote daqueles com riscas encarnadas sobre fundo mate.
Pacotes
em papel grosso que hoje diríamos papel reciclado, mas era apenas papel
grosseiro. Folhas lisas, acinzentadas, para enrolar uma quarta de sabão ou de
toucinho; mas se fosse meio litro de grão de bico ou um decilitro de feijão
manteiga, já o material era aviado dentro dum pacote semelhante àquele que ele
lhe trouxe com um quilo de cerejas derramando. Um pacote que ela recebeu
entre as mãos estendidas, ainda ele dizia: toma, vamos comê-las ali no cais.
Se
fosse o tempo das castanhas assadas, ele teria trazido uma dúzia delas num
cartuxo feito, por mãos hábeis, dum pedaço de papel de revista ou de jornal.
E
ficaram sentados na beira do cais, as sandálias dela balançando tirinhas
brancas sobre um rio da cor das nuvens rosadas por ser à hora do ocaso.
E
comeram cerejas, algumas tiradas da boca dele, pela boca dela, outras tiradas
da boca dela, pela boca dele e, nisso, arrastando beijos e babando-se, cada um
mais apaixonado do que o outro.
Saborearam,
assim, o doce dos frutos que homens e mulheres vinham vender em carros
traccionados pelas mesmas mãos que os teriam apanhado de madrugada. Gente da
serra, e ele e ela a degustarem, ali no cais, as cerejas que essa gente tinha
colhido: ele e ela com os dedos a ficarem borradas de vermelho, os mesmos dedos
com que acenariam ao táxi, e as bocas deles a parecerem bocas de um palhaço que
tivesse acabado a cena e se desmaquilhasse.
Eles
rindo e trocando beijos ainda no banco de trás, depois de terem dito, a olhar
os olhos do homem pelo rectângulo diminuto do retrovisor: para a Estefânia, por
favor; deixe-nos no Largo.
***
Ela
lembrar-se-á que as montras na rua do Arsenal já estavam iluminadas, e ele dirá
que não sabe se o carro subiu a rua do Alecrim ou se seguiu outro
caminho.
Mas
ambos estarão de acordo em afirmar que a corrida foi rápida, que o táxi terá
feito o trajecto mais curto.
E
nem dirão, por desnecessário, que iam encostados um ao outro e de mãos
dadas.
Como,
também, ela não contará, mas há-de recordar-se, que ele, a certa altura do
trajecto, lhe colocou a outra mão sobre as pernas nuas, descobertas da saia de
pregas que subira até quase às virilhas pela posição de estar sentada: uma saia
que era azul escura a rasar-lhe os joelhos, quando andava.
Era
a tarde em que tinham decidido que casariam em Janeiro no dia em que ela faria
vinte anos.
Diriam
aos pais, quando fizessem a chamada das quintas-feiras: sempre à mesma hora, e
sempre no mesmo dia, todas as semanas. Ele e ela, juntos na cabine, munidos de
moedas e, do outro lado, os pais dele numa aldeia perto de Braga, se atendessem
primeiro, e, de seguida, os
pais dela que viviam a dois quilómetros de Tondela.
E
iam dando beijos um ao outro.
***
Nenhum
deles saberá contar.
Que
iam entrar na Pastelaria Vitória junto à qual o táxi os tinha deixado: fiquem
já aqui que isto hoje está complicado, tinha dito o homem a parar o carro e a
desligar o taxímetro.
Que
ele tirara a mão das pernas dela, quando o taxista falou, isso, ela não
contaria mas havia de sorrir por se lembrar.
Que
havia muita gente nos passeios, e que sim, que era uma multidão, confirmariam
ambos.
Que
tinham percebido que eram manifestantes e que havia cavalos e mais policia e
que, por isso, tinham guinado passos para a pastelaria, também tinham dito.
E
que não tinham chegado a entrar, que tinham surgido os tiros e mais não sabiam,
dirão, um e outro, a serem inquiridos.
***
Não
tinham morrido, por sorte, disseram todos, médicos incluídos.
Que
ela, teve aquela perfuração no pulmão esquerdo que durou, sangrando, todo o mês
de Maio; e ele teve a contusão no ombro pelo choque do disparo: de raspão,
diziam todos e, no entanto, rasgara-lhe as carnes. Uma cicatriz de palmo, e
muitos pontos: dezoito, disse-lhe a mãe que veio lá do norte com o pai, a
deixarem tudo para vê-lo.
E
tinham sido levados para o hospital sob prisão.
E
tinham sido interrogados como se fossem eles os criminosos.
***
Nunca
houve resultado: apenas que os disparos eram de uma Walther
P3 porque a bala, nela, fora
retirada de entre duas costelas e a dele ficara incrustada algures na
pastelaria, e a polícia tinha resgatado, uma e outra.
***
-
Que sorte que não te tivesse apanhado o pescoço ou o rosto - assim choramingou
a mãe dele, por várias vezes.
Os
pais dela tinham-se mantido sem lágrimas nem comentários e tinham conseguido
que, no dia seguinte, lhes tivesse sido retirado o mandato de prisão.
***
Hoje
passaram muitos anos.
Eles
não tinham esquecido, mas nunca falavam nisso.
Hoje,
Mariana, tem nas mãos um ramo de malmequeres brancos com uns salpicos de verde
e, preso nele, um cartãozinho onde escreveu: saudade dos meus pais.
E
o Jorge trouxe a filha de seis anos e os dois deitaram um bocado de terra nas
covas do avô e da avó.
***
Foi
no regresso a casa, um apartamento espaçoso na Pascoal de Melo, logo ali ao
Largo da Estefânia. Moraram aí desde que se casaram num Janeiro muito frio.
Já
nem trabalhavam nos arquivos da Imprensa Nacional, mas tinham lá ido e, no
regresso, apanharam um táxi.
-
Eu vinha devagar a descer a rua do Salitre - assim disse o taxista, ainda em
choque.
Que
tinham sido dois tiros da mesma arma: uma Walther P3, diriam os peritos.
Dois
tiros, um a seguir ao outro: nele, o primeiro, desfizera-lhe a nuca; nela, o
segundo, trespassara-lhe a cabeça.
1 comentários:
Nossa, adorei o crescendo do suspense! Que sina! Ou seria proposital? Fiquei pensando em destino, mas se você quisesse continuar e escrever um romance policial, poderiam ter sido de propósito os tiros. Maestria nessa escrita. E um começo tão doce e sensual. Muito bom!
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