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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Doendo

É muita dor demais além da conta. Tudo dói. Doem todos. E tanto! Ali fora, cá dentro, em rede, macro e microcospicamente, de súbito, com link, ordinária. Uma desgraça crescente lateja, estrala, sufoca, oprime, ulcera o espaço físico, psicológico, social. Pra sempre? Padecimento pandêmico nas galáxias?

Há dores registradas em várias mídias; outras secretas, anônimas. Umas expostas ao extremo, outras carecendo denúncia. Pequenas aflições exaltadas, grandes torturas menosprezadas. O sentimento público. O espetáculo privado da dor. Nas artérias e nas telas. Não faltam protagonistas, espectadores, sentinelas. Sobram roteiristas e algozes. Espelhos, poltronas e guilhotinas estão ocupados. Potência máxima. Soçobra a raça humana.

O calo, a cárie, a alergia, a seca, a enchente, o vício, o abandono, o cansaço, a fome, o Zika, o carcinoma. Corrupção, preconceito, incultura, injustiça, terror, censura, abuso, amasso (daquele ruim), desabraço. O desvio da merenda, o rompimento da barragem, a microcefalia, o pânico, a morte e a danada da saudade.

Na madrugada insone, a turba chora feito bebezinho com gases. Essa cólica habita em tanta casa e atende por tanto nome! E não convém julgá-la, enumerando critérios. Angústia não se mede. O castigo é o próprio absinto.

Como assegurar, por exemplo, que uma criança que perdeu o cãozinho sofre menos que aquela cortada no vidro? A criança violentada poderá sorrir novamente? Parir gêmeos doentes dói mais que não poder ter criança? Enterrar o filho pequeno é pior que ver a mãe vegetando na UTI? Perder a função comissionada é mais sofrido que não ter emprego? Ser obesa pesa mais que passar fome? Há causa aceitável para o suicídio?

Por que alguns motivos de aflição são levados mais em conta que outros? Qualquer penar merece terapia? Qual dor é digna de prontuário? Qual deve ser ignorada? Há sempre culpados? Por que tantas vítimas? Carrasco e escravo não se confundem, às vezes? Convém sorver a tristeza dos outros? É desrespeitoso aconselhá-los a parar de sofrer? E se eu decidir suspender meus doendos? Não seria de bom tom acordar o perdão e revesti-lo de glória?

O cenário apresenta paliativos contra esse negro quadro, mas ainda inocentes. Analgésicos estéreis, antibióticos salpicados, lágrimas calmantes, unguentos caducos, terapias rasas, devoção aguada. Assim, a cura pode até acenar, mas gora, excitando superbactérias da tristeza mórbida.

Quem está realmente preocupado com a agonia alheia? A compaixão por si só resolve alguma coisa? Como ser solidário e, ao mesmo tempo, ficar imune a tão pungente contágio? A propósito, alguém quer ser curado? Nacos diários de alegria poderiam revolucionar a praga depressiva atual? Vale ignorar os números e notícias das tragédias para se abster um pouco delas? Vale sofrer tanto, já que morreremos todos? Convém esperar, imóvel, o fim desse tempo malsão? Ainda rola a opção pelo otimismo?

Deram poder excessivo à dor. Apoiaram sua legitimidade. Abaixo assinaram seu arbítrio e autoridade. Cassaram (cassamos) nosso direito à alegria. O sofrimento se generalizou. Estamos todos ardidos, bolorentos, dolorosos. Ou — quem sabe? — mais quebradiços que outrora. E quando doemos, acabamos também por magoar outrem. Doemos até sem sentir, ruminando mágoas!

Assim sem remédio nem palavra pra dizimar tanta dor, termino o meu texto cabisbaixa, impotente, pulsos retorcidos: a LER (Lesão por Esforço Repetitivo) atrapalhando o meu ESCREVER. 



Texto que ganhou o 1º lugar no 3° Concurso Internacional de Literatura da ALACIB (Academia de Letras, Artes e Ciências Brasil) na categoria Crônica Adulto.

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