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quinta-feira, 15 de setembro de 2016

baloiço




Natércia tem uns olhos muito verdes e muito expressivos.
O olho direito teimosamente encasquilhado quase junto ao outro olho, junto ao nariz que nela é um nariz arrebitado, pequenino como só podia ser numa cara miudinha salpicada de sardas.
Natércia tem a testa alta e o cabelo, vagamente branco, está cortado curto: uns caracóis onde ainda se adivinha a cor do tijolo que terão tido, um ocre quase igual à cor que espreita das esfoladelas de cal nas paredes, esfoladelas que se multiplicaram desde que Natércia ficou a habitar, sozinha, a casa da avó Cremilde.
A avó era uma mulher espigada e rija como um tronco de alfarrobeira, sempre com aquela saia negra a roçar a terra e o soalho do quarto onde Natércia dorme, ela e a cadela, uma podenga cor de mel que a segue para onde vá, e não vai longe, que Natércia faz meses que lhe rebentou aquela ferida feia na perna esquerda.
Natércia sempre foi órfã.
A mãe, Maria do Rosário, que nunca conheceu, era uma rapariga dada a fadigas prolongadas e a desmaios. Disse-lhe isso a avó Cremilde nos raros momentos em que lhe falou da mãe. Foi também a avó que lhe contou que a mãe tinha dezasseis anos quando emprenhou do Afonso, seu pai. Que tinha sido num dia de baile lá na freguesia. Era junto à praia, uns dois quilómetros indo pela estrada, mas as raparigas, seguidas por um rancho de rapazes, atalhavam sempre caminho pelos campos.
Afonso já tinha sido incorporado.
Embarcaria para Moçambique e Maria do Rosário pariria às mãos da madrinha Gertrudes vinda na burra Graziela e retornando com os alforges com o que bastasse para o esforço de ter salvo mãe e filha, que Natércia, como o senhor prior a baptizaria, viera atravessada e com o cordão enrolado no corpo.
Natércia nasceu no mesmo dia em que chegou a carta.
A avó Cremilde despedira-se com mesuras e beijos da comadre Gertrudes depois de lhe ter enchido os alforges da burra e, mal a alimária e a comadre desapareciam lá abaixo, quase junto à estrada, já ela se sentava à luz do candeeiro.
Ainda foi ao quarto onde Maria do Rosário e a recém-nascida era suposto que dormissem: parecera-lhe ouvir um vagido. De manso, entreabriu a porta, mas tinha sido apenas um ronronar da criança ainda mal habituada ao ar que respira e, sossegada, a avó Cremilde preparou-se para ver o que trazia o envelope. Era azul clarinho com umas riscas inclinadas em azul forte e encarnado a fazerem um debrum em todo em volta.
Rasgou-o devagar.
A avó Cremilde tinha-os casado nos poucos dias antes do embarque.
Caso-os, não vá o diabo tecê-las, tinha pensado.
E tinha tido razão em desconfiar daqueles corpos ferventes.
De dentro do envelope retirou uma folha fininha. Desdobrou-a e chegou-a à luz trémula do candeeiro, que a luz eléctrica viria apenas depois dos cravos. Por sinal, muito depois.
A avó de Natércia sabia ler o que bastasse para soletrar aquelas letras batidas com vigor de modo a encastrarem no papel de seda, que era a carta, caracteres negros, aqui e ali borrados do vermelho de fita de outro carreto o que levaria a crer que tivesse sido numa máquina velha que aquele “Major Almeida do Patrocínio, segundo comandante” escrevera ou mandara que escrevessem e ele assinando apenas com dois traços verticais onde ninguém adivinharia que era José Carlos Almeida do Patrocínio a fazer em Moçambique a sua terceira comissão.
E foi soletrando.
Mas, antes que o que lia lhe dissesse fosse o que fosse, foi espreitar o que estava escrito no verso do envelope, e balbuciou as letras escritas na caligrafia segura de quem sabe: Comando da Região Norte, Moçambique. Tudo em letras de forma.
Só depois retornou à folha de papel que mantivera presa entre dois dedos, e foi balbuciando palavras que nem lhe fizeram sentido, assim, a lê-las soltas, mas que, pouco a pouco, no seu balbuciar que era como se a carta lhe falasse, se juntaram em dizeres que entendeu.
A avó Cremilde segurava o papel nas mãos pintalgadas do verde da erva que apanhava, a cada dia, para os animais: ficara-lhe aquele tom como segunda pele.
Natércia dormia o seu primeiro sono de nascida.
E as mãos da avó Cremilde tremelicaram enquanto no rosto magro, serpenteando uma ruga, lhe correu um fio de lágrima.
Foi, assim, depois que leu a carta inteira.
Natércia já sem pai quando nasceu, ficaria sempre órfã, que a mãe morreria dois meses depois de ter chegado a carta que a avó Cremilde lhe daria para que lesse a saber do marido.
Natércia cresceu sem outro mimo do que aquele imenso silêncio da avó Cremilde a tratar dos bichos e a tratar do pedacinho de horta e a tratar da roupa das camas na barrela de cada semana e a tratar de que ela, Natércia, “fosse uma senhora” que era como lhe dizia a vestir-lhe o bibe muito branco por cima da roupa que, nos intervalos do muito que fazia de uma lado para o outro, passajava sentada na sombra daquela alfarrobeira enorme: todos os puídos bem unidos num ponto entretecido para que durasse outro inverno.
Natércia nunca soube.
Que tinham sido febres do parto, disse-lhe sempre a avó Cremilde no mesmo tom em que lhe dizia, amiúde, a entrançar-lhe os cabelos: vais aprender para seres uma senhora.
Natércia nunca soube que o corpo de Maria do Rosário ficara balançando na alfarrobeira onde, anos depois, a avó Cremilde lhe faria um baloiço.
Fez a quarta com distinção e empregou-se, que a avó Cremilde tinha falado com a dona da padaria, e foram trinta e oito anos com os descontos todos.
No dezassete de um Agosto insonso de calores, depois de umas dores de cabeça e duns frios despropositados, Natércia fora dar-lhe o caldo e encontrou a avó virada sobre o lado esquerdo, o braço pendente para fora do leito de ferro onde sempre tinha dormido naquele mesmo quarto onde os escafelos, hoje, deixam ver o vermelho dos tijolos.
A avó Cremilde morreu ainda Natércia era uma rapariguinha de cintura fina e pele rosada que subia e descia lá do cimo do monte até à estrada onde passava a camioneta da carreira que a levava à cidade pelas oito e a trazia, ao fim do dia, já de noite nos dias pequeninos de Dezembro e Janeiro.
Natércia nunca buscou marido nem homem algum lhe terá descoberto escondidas formusuras.
A reforma que recebe é pequena mas ela sempre tratou da horta e o que tem chega-lhe para o prato e ainda lhe sobra para pagar ao pedreiro que virá amanhã rebocar as paredes e dar uma pintura.
A ferida, essa, é que a preocupa: não sara nem com mezinhas nem com remédios da farmácia, e cresce, como cova, para dentro do bojo da perna.
Uma ferida feia, disse-lhe o médico e repetiu-lhe, ontem, a enfermeira.

Um dia destes, Natércia sentou-se debaixo da alfarrobeira e lembrou-se do baloiço. Lembrou-se daquelas cordas grossas que seguravam a tábua do assento. E benzeu-se. Que ideia tão pecadora lhe havia de vir à ideia. E benzeu-se de novo.



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3 comentários:

Texto simples, profundo e com um final tão supremo quão soberbo. Parabéns Fátima. Réjo Marpa

"Que ideia tão pecadora lhe havia de vir à ideia. E benzeu-se de novo."
Esta frase sublime, resumindo a ideia de tudo, da ideia nunca dita em palavra.Belo conto! Muito bom!

Parabéns, Fátima. Permite-me que destaque esta frase que me encanta: " Lembrou-se daquelas cordas grossas que seguravam a tábua do assento. E benzeu-se".Tudo dito, através do não-dito.
Adoro isso!

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