Quando criança, vivi em uma dessas
pequenas cidades onde quase nada acontece e banalidades são transformadas em
hilariantes sessões de conversa entre comadres. Minha mãe e suas amigas
reuniam-se todas as noites na modesta calçada de minha casa e tagarelavam sobre
os mesmos assuntos da véspera. Eu, de tranças apertadas e metida em monótono
vestido de chita, sentava-me sobre o grosso tronco de jacarandá e assistia à
dança das línguas, que bailavam sobre a vida das mulheres ausentes ao
costumeiro encontro.
Eu não compreendia o que as animava.
Apesar de ainda ser uma menina sem os dentes de leite incisivos, eu já sentia
piedade das mulheres que ignoram tudo que move o feminino. Nenhuma daquelas
senhoras jamais experimentaria ― durante toda uma vida de risos sem graça ―
satisfação real.
Após as despropositadas conversas,
despediam-se sem a necessidade de confirmar as devidas presenças no dia
seguinte, e depois, e depois, e depois. Sonolenta, eu suspirava cansada não só
daquela noite, mas de todas elas, das passadas e das futuras. Antes de entrar,
meus olhos corriam o mundo e apenas viam, decepcionados, aquele ininterrupto
cenário de moscas. Restava-me a servil obrigação de deitar, mas o sonho nunca
vinha.
Naquele domingo de agosto, uma das
sessões enfadonhas de troca de feitiços entre fadas gordas teve a verborreia
estancada por um repentino alvoroço que se desenhou na rua em que morávamos.
Voltamos nossos olhos na direção do alarde e nos deparamos com um grupo de
ciganos que avançava em direção ao Centro. Como se aproximavam, mamãe sugeriu
que entrássemos, sob o pretexto de que eram todos bandidos e ladrões. Do portão
de minha casa, pude devorá-los com meus olhos quase cegos pela monotonia.
Finalmente, haviam chegado. Eram lindos, mágicos, deuses que quase pereciam por
eu jamais os ter alimentado com meu desejo de tragar a eternidade das coisas.
A razão da balbúrdia era uma das
ciganas, trazida na vanguarda do bando. Estranhamente, seu próprio povo
agredia-a com pedradas, enquanto lhe rogava terríveis maldições. Mamãe tentou
tapar meus ouvidos, mas inquietei a cabeça. Eu precisava ouvir a melodia
daquelas palavras de fogo. Quis saber a razão da tortura, adivinhar o que a
mulher fizera, que falta havia cometido, o que justificaria tão grotesco
espetáculo. Em seu corpo brotavam chagas penosas e de sua cabeça escorria o
sangue que lhe banhava a face. Mesmo assim, a cigana mantinha-se impassível e
de semblante desafiador. Seu olhar trazia sentimentos que eu desconhecia. Ao
encará-la, senti-me atraída por seu sangue, sua dor, seu olhar de navalha.
Quando a rua acalmou-se, minha mãe
ordenou que eu entrasse. Com o ouvido preso à porta do quarto, escutei-a fazer
mil recomendações às suas amigas:
― Tenham cuidado. São um bando de cães!
Quando a casa silenciou, sentei-me
sobre o colchão de estopas e lamentei outra noite sem sonhos. Eu nunca sonhava.
Nunca.
Derrotada, dormi.
Galinhas apavoradas, gargalhadas, um
pote cheio de caranguejeiras, um vestido vermelho balançando no varal. Pela
primeira vez em minha curta existência, meu sono foi invadido por fenomenal
assombro. Como fantasmas sem cabeça, misteriosos sinais se arrastaram por minha
inconsciência e me confidenciaram segredos incompreensíveis. Acordei
sobressaltada e, com meu limitado discernimento infantil, refleti sobre a
novidade. Uma leve mordida no lábio inferior. A perna boa fora da cama.
De repente, uma rajada de vento
escancarou a janela do meu quarto. Vi que, lá fora, a noite me aguardava para o
vertiginoso passeio. Não desobedeci a mãe de todo mistério: pulei o peitoril,
rodeei a casa e saltei a mureta do quintal.
Apenas os cães perambulavam pelos becos
de Corguinho Novo e poucas casas ainda tinham suas luzes acesas. Ofegante,
corri na direção que os ciganos haviam tomado. Chegando ao fim da avenida
principal, entrei na mata e segui a Picada da Raposa.
― Onde estão? Por que me deram de
presente um sonho que não entendo? ― perguntava-me desorientada, enquanto
corria às escuras na direção do rio.
A primeira visão que tive foi a de
vaga-lumes às margens da correnteza, petrificados no ar como tristes estátuas
de luz.
As tendas iluminadas por pequenos
lampiões e armadas em círculo estavam guardadas por três homens, que velavam
uma grande fogueira enquanto bebiam. Contive minha excitação a fim de que
nenhum deles me percebesse ali. Segurei meu peito com força, respirei todo o ar
do planeta e, mesmo assim, quase desfaleci.
Pé ante pé, aproximei-me do aglomerado
de barracas. A mesma lufada de ar que invadira meu quarto me fez olhar na
direção do leito do rio, onde encontrei aquela infeliz tenda, segregada das
demais.
O resto do bando não me despertava
interesse. Chegando ao abrigo improvisado, tomei em minhas mãos a velha
lamparina que iluminava sua entrada. Ao clarear o interior daquele sarcófago,
encontrei ― prostrada sobre o chão e mortalmente ferida ― a cigana que há
poucas horas havia sido apedrejada. Indiferente, dissequei-lhe a face
cadavérica, com meus olhos outrora infantis. Não me assustei ao vê-la morta.
Senti-me vingada. Retirei seus anéis, suas pulseiras e todos os outros
acessórios de sua massacrada beleza e enfeitei-me com vaidade. Com um gesto
simples, apaguei a chama da lamparina e, em um salto espectral, as imagens de
meu sonho estamparam a lona da tenda. Só então fui capaz de ler a enigmática
mensagem. Eu havia nascido para recuperar o lugar que aquela mulher havia
usurpado. Daí a razão de seu apedrejamento: os outros ciganos também sabiam a
verdade. E, naquela noite, haviam chegado à minha cidade a fim não só de
julgá-la, mas de resgatar-me.
Após tantas noites sem sonhos e de
angustiosa espera, eu finalmente havia encontrado meu povo.
Emerson Braga
1 comentários:
Que viagem, Emerson!
Muito bom.
- Alice Gomes -
Postar um comentário