A
vida de Gualdino Freixo, sempre acompanhada por uma corrente de
consciência palradora, decorria num ramerrame pontuado pela
regularidade pendular das refeições domésticas, a vacuidade dos
programas televisivos e a futilidade dos seus passatempos, em que
avultava o sudoku.
Há muito tinha deixado a sua Beira Baixa para conquistar a grande
capital, que muitas vezes se revelara uma amante perversa. “Porra!”
acudia-lhe aos lábios quando se lembrava desses tempos de
desenraizado.
Os
beirões têm fama de laboriosos e diligentes, mas, nesse aspeto,
Gualdino não era um beirão típico. Na sua meia-idade, cultivava
uma postura ativa e vagamente agreste, como a árvore que lhe dava o
sobrenome — Freixo —, mas estava sempre disposto a deixar para
melhor oportunidade alguma tarefa agendada. Trabalhar e competir
tinham tido o seu tempo. Agora, reformado e apaziguado dos antigos
afãs, Gualdino só queria sossego, algum silêncio, e desfrutar a
boa-vida. Junto a um sofá onde fazia umas sestas tinha um pequeno
quadrinho com a frase: “Que bom é não fazer nada e depois
descansar!”
Nessa
manhã acordou com um auspicioso sinal: o consolo gratificante de uma
ereção. Era uma prova de vida mais relevante que a habitual
confirmação de poder mexer o dedo grande do pé em cada início de
mais um dia. A sua mente, seduzida pelo contentamento do físico,
deixou-se invadir por um júbilo sereno. O dia que aí vinha só
podia correr bem.
Pouco
depois de verificar que a manhã prenunciava brindá-lo com as
primeiras chuvas de outono, pegou no caderninho com problemas de
sudoku que o entretinha horas esquecidas e instalou-se ao
comprido no sofá da salinha, cabeça no braço do lado da janela,
para apanhar o máximo de luz no papel.
Desde
novo que gostava de paciências, palavras cruzadas, puzzles,
resolução de problemas. Andar à volta da questão, encontrar o fio
da meada, prosseguir pouco a pouco até encontrar a solução,
traziam-lhe um prazer intelectual dos mais saborosos. Cada número a
descobrir no sudoku era, quase sempre, um problema autónomo
por cuja solução havia que penar, mas tinha a paciência e a
pretensa sabedoria dos beirões: “Grão a grão, enche a galinha o
papo”, pensava, confiante. Nestas preocupações ociosas se
empenhava.
Um
sorriso subtil aflorou-lhe os lábios ao ouvir a chuva a bater na
vidraça. Esticou os pés para a frente e para trás, que estalaram
agradavelmente. Ia ser uma manhã daquelas!
Enquanto
alguns dos seus ex-colegas tentavam continuar a ganhar dinheiro, e
outros arranjavam depressões por se sentirem inúteis, Gualdino
declarava que “Inútil” era o seu nome do meio e convivia bem com
ele. “Quanto menos chatices, melhor.”
Na
verdade, parecia que as procurava, mas daquelas que lhe davam prazer.
Ultimamente, passara dos habituais problemas de sudoku
de 9x9, para os enormes 16x16. No fim dessa manhã teve a satisfação
orgástica de terminar um desses problemas que já o vinha deliciando
havia três dias, como metodicamente anotara na margem do caderninho.
“Ah, dia abençoado!”
Depois
de almoço, como a chuva parara, a mulher foi fazer a caminhada
habitual, mas Gualdino só a acompanhou até ao jardim próximo de
sua casa. O tempo estava fresco e agora eram brancas, em borbotões
de algodão, as nuvens que evoluíam no céu estranhamente luminoso.
Durante um pouco, aceitou o jogo das formas para o qual estas nuvens,
autónomas e bem delineadas, sempre convidavam. Uma pareceu-lhe o seu
cão “pelo de arame” da infância no campo; outra, um torso
feminino deitado. Cães de apartamento frustrados, na ânsia de
encontrarem almas-gémeas pelo cheiro, arrastavam cinquentonas
solitárias pela trela, ao longo das estreitas alamedas sinuosas em
que já eram evidentes os despojos que o outono impõe às árvores.
“Por baixo da roupa, todas vão nuas.”
Junto
ao banco em que se sentara, chamou-lhe a atenção um formigueiro.
Diligentes e sem hesitações, os insetos negros estavam a espalhar
no chão em volta do buraco de entrada todos os haveres que a chuva
da manhã tinha ensopado — sementes, pedaços de talos, folhas e
carcaças de bichinhos vários. Depois de secos, voltariam a
recolhê-los.
Sempre
admirara os insetos sociais, a sua disciplina, a divisão do
trabalho, a certeza das tarefas a executar. “Seria desejável uma
sociedade humana semelhante à das formigas? Será que não há
indivíduos que tenham dúvidas, que contestem a justeza das
decisões, que se desalentem do esforço a realizar?” —
perguntava-se.
Deu
uma volta pausada pelo jardim. Num recanto onde a autarquia instalara
mesa e cadeiras metálicas, um magote de outros reformados rodeava
quatro compenetrados jogadores de sueca, saboreando provavelmente os
seus requintes de estratégia. “Muito reformado há em Portugal!”
Gualdino não se aproximou; cultivava o individualismo dos
autossuficientes beirões. “Formigueiros, não!”
Uma
nuvem tapou o sol por momentos e uma brisa fria fê-lo arrepiar-se.
Regressou a casa, sentindo-se recomposto de físico e mente. À porta
do prédio encontrou o tosco da cave esquerda. Estava agitado e
falava atabalhoadamente:
— Vizinho,
já liguei para o piquete; o vizinho não estava, já liguei para o
piquete para virem fechar a água. Veja como isto está!
O
átrio de entrada, com um dedo de água, alimentava um estreito
córrego que desaguava nas pedras do passeio e escorria para a
valeta. O tapete de cânhamo estava ensopado. Um jorro bem visível
nascia nas uniões das pedras de mármore da parede lateral esquerda,
a meio metro do chão.
— Oh,
porra! — Gualdino percebeu que a bonança do dia acabava de sofrer
uma reviravolta. Era ele o administrador do prédio e uma coisa
destas significava chatice, muita chatice. “Não há bem que sempre
dure…” — Mas donde é que vem a água? Será que foi alguma
infiltração vinda do telhado? Esta manhã choveu…
— Não,
vizinho; isto deve ser da canalização. Também, com mais de
quarenta anos…
— Eles
disseram se demoravam?
— Já
liguei há uma hora. Devem estar a chegar. Se o vizinho quiser, eu
tenho um canalizador amigo que é muito competente. Quer que eu lhe
ligue?
— Não,
deixe estar — defendeu-se Gualdino, desconfiado. — Com certeza
que eles arranjam o que houver para arranjar.
— Não
se fie! Vai ver que só cortam a água e nós que nos desenrasquemos.
Na
verdade, apareceu um indivíduo que tinha ar de poder arranjar uma
briga ao menor atrito: cabeça rapada, olhar agressivo, poucas e
sobranceiras palavras. Entrou no átrio, olhou fugazmente para a
parede que vertia e saiu. Com um gancho, levantou uma pequena tampa
redonda de cimento a meio do passeio, introduziu no buraco uma chave
especial e deu-lhe várias voltas. O fluxo da parede amainou até só
gotejar.
— Vocês
têm alguém que arranje isso? — lançou.
— Não!;
os vossos serviços não reparam os problemas com a água que
abastecem? — devolveu Gualdino, meio perguntando, meio reclamando.
— Aliás, o que acha que aconteceu?
— Uma
rotura na canalização; só pode; já dentro do vosso prédio.
Desta torneira para lá é da vossa responsabilidade.
Gualdino
estava a ver a vida a andar para trás. Ser administrador, até
então, não lhe tinha dado nenhum problema.
— Eu
não reparo, não posso — retornou o mal-encarado —, mas se
quiserem dou-lhes o contacto de um colega meu que pode vir cá, fora
das horas de serviço.
— Se
fizer favor! — balbuciou Gualdino, derrotado. Percebeu que estava
provavelmente a cair nas garras de alguma mafia das reparações,
mas, que fazer?
— Quando
tiverem isso reparado, comuniquem connosco para virmos abrir a água
— explicou, sobranceiro, o profissional do abre-fecha, enquanto
estendia ao infeliz cidadão um cartão com um número de telefone.
Uma
hora depois de Gualdino ligar, chegou o técnico contactado. Olhou,
encostou o ouvido à parede do átrio, avaliou o local e declarou:
— Têm
aqui uma bela encrenca. Se vamos partir o mármore, corremos o risco
de escavacar isto tudo e não darmos logo com a rotura. E o mais
provável é que a canalização esteja toda podre. O melhor é
passar um cano por fora da parede desde a rua, por cima da porta, até
encontrar a continuação da canalização ali já na escada. É um
trabalho mais limpo.
— E
em quanto é que isso nos fica? — tateava Gualdino, esperançado na
resolução rápida do problema que secara as torneiras a todos os
condóminos, mas preocupado com os míseros 100 euros da caixa. No
banco pouco mais devia haver.
O
técnico sacou da fita métrica e foi anotando os tamanhos dos vários
trechos retos que o novo cano faria. Depois despediu-se:
— Tenho
de saber uns preços de material. Eu já lhe ligo.
Gualdino
correu ao Multibanco a saber que saldo tinha a conta do condomínio:
pouco mais de 400 euros. Comprou dois garrafões de água e levou-os
à mulher. Passava das 19 horas, vizinhos entravam, queriam saber se
teriam água para fazer o jantar, queriam respostas. Afixou um papel
no átrio, ao lado da lista dos condóminos devedores, avisando que
havia uma rotura e que, provavelmente, não seria reparada nesse
dia.
De
chofre, tomou consciência da falta que fazem alguns dos
fornecimentos prosaicos que damos por certos: a água, a energia
elétrica, o gás, até mesmo o telefone, a televisão ou a internet.
“Se algum falta, instala-se a perturbação nas famílias.
Comparando, um transtorno quase tão grande como sobreveio às que
perderam dois ordenados anuais, por desgoverno dos governos. É
desagradável, é, cria desconforto e revolta, mas que desordem se
instalaria se faltasse ao mesmo tempo a água, a energia elétrica e
todos os outros bens essenciais, incluindo a comida? Deve ser um
equivalente terramoto na vida que experimenta quem fica desempregado.
Aí, sim, deve ser o caos. E todos os dias estão a fechar dezenas de
empresas.”
Ligou
para o técnico. “1500 euros!” foi o preço que ouviu. Se
quisessem fatura eram mais 23%. “Porra!” Gualdino parou de
respirar. 1500! Não tinha grande noção de preços, mas esperava
muito menos. Só pensava que estava tramado. “Sem dinheiro para a
reparação, o que lhes restava? Ficarem sem água?”
— Não
temos tanto dinheiro; somos só dez condóminos e há vários com
dificuldades.
O
técnico argumentou que o problema era deles, que o material é caro
mas é bom, que o prédio ficaria com uma instalação garantida, mas
que ia refazer as contas e já voltava a ligar.
Gualdino
começou a elencar as possibilidades e as alternativas. A mais óbvia
era tentar arranjar alguém que fizesse a reparação por um preço
menor. Foi à sua lista dos cartões que lhe apareciam na caixa de
correio a oferecer todo o tipo de serviços e começou a contactar os
canalizadores um a um. Dos que atenderam, vários escusaram-se,
dizendo que estavam cheios de trabalho, mas dois prometeram aparecer
de manhã — “9, 10 horas” — e outro logo depois de almoço. O
amigo do vizinho da cave disse que vinha ainda nessa noite.
Que
fazer a seguir? A diferença entre o orçamento recebido há pouco e
o dinheiro de que dispunham era abismal. Sem prejuízo de uma melhor
proposta, era evidente que tinha de arranjar mais dinheiro. Sabia de
cor a lista dos cinco devedores e quanto deviam. Começou pelo
condómino da cave esquerda, o que tinha andado o tempo todo por ali:
— Ouviu
o que eles levam, Sr. Inácio? O senhor não consegue pagar o que
está a dever? Ou pelo menos parte?
— Ó,
vizinho, não posso. Como sabe, tenho esta situação: desempregado e
com a minha mãe à minha conta… A minha mulher é a única que
ganha alguma coisa, mas como mulher-a-dias, já vê… E tenho o
miúdo a estudar — explicou-se contristado. — Vamos lá ver se
não tenho de entregar a casa ao banco…
“É
uma gaita!”, pensou Gualdino. O que ele dizia era verdade, mas
sentia que à conta das dificuldades se ia aproveitando.
— O
vizinho tem a sua razão, mas quem não tem problemas? Agora, com
este berbicacho, todos temos de ajudar, senão ficamos sem água…
Já viu? — atirou ainda Gualdino para a parede em que se tinha
transformado a lamúria do homem. A seguir, foi à gorda do segundo
direito:
— Boa
noite, Dona Conceição, desde há bocadinho — começou Gualdino
cortesmente, mas com vontade, há muito, de lhe chamar uns nomes
feios. — Não vamos ter água hoje. E amanhã, não sei. Estamos
com um grande problema. Os técnicos levam 1500 euros e nós só
temos 500. A senhora não consegue pagar alguma coisa das quotas em
atraso?
— Então,
o seguro que pague o arranjo, não é? — devolveu ela, impante.
Gualdino
olhou-a com um misto de tristeza e animosidade. “Esta vaca tem o
descaramento de falar em seguro do prédio quando está a dever três
anos de quotas de condomínio?” Suavizou:
— Já
há um ano e tal que não temos seguro, Dona Conceição. A
administração não tem dinheiro nem para a limpeza da escada. Não
se lembra que na reunião combinámos que cada um limpava a sua parte
por não haver dinheiro para a mulher da limpeza?
A
faltosa pareceu ficar surpreendida. “Como é possível que haja
pessoas tão indiferentes ao governo do prédio?” Aventou o
impensável para Gualdino:
— Podia
pedir-se um empréstimo ao banco… Se se explicasse que era para
obras…
— Ó,
Dona Conceição, não diga mais nada! — eriçou-se Gualdino, que
não tinha cartão de crédito e era ferozmente contra os
empréstimos. Só comprava o que precisava depois de juntar o
dinheiro necessário. — E quem é que o paga, sou eu? Ou acha que
os empréstimos não se pagam? Peça-o a senhora, que os três anos
de quotas muita falta fazem ao condomínio. Francamente! A senhora
desculpe, mas em vez de andar com um telemóvel de 300 euros bem
podia pagar o que deve.
— Eu
ando com o que eu quiser, e o senhor não tem nada com isso. Nem o
senhor nem ninguém. Comprei-o, estou a pagá-lo, é meu. Se o
arranjei é porque preciso.
— Precisa
para quê? Qualquer telemóvel de 30 euros dá para ligar para todo o
lado…
— Preciso!
E agora? Quero ir à internet onde me apetece — respondeu a
consumista com menor exaltação do que Gualdino esperava. — E
também tem GPS. Mas em relação às quotas, digo-lhe mais: eu só
pago quando todos pagarem, que eu não estou para andar a trabalhar
para os outros. De qualquer maneira, agora também não tenho
dinheiro.
— Pois,
se o gasta em juros! — sibilou Gualdino. — Quem se estende mais
que a cama…
A
devedora acabou por prometer tentar arranjar 100 euros no fim do mês.
Gualdino não disse que no fim do mês já não vinha a tempo para o
problema de “agora”, mas agradeceu. A seguir ligou para duas
condóminas que não viviam no prédio, mas tinham as casas
arrendadas. Uma começou por dizer que não devia nada, mas depois de
confrontada com a leitura do texto da ata, prometeu enviar um cheque
no valor de um ano: 200 euros. A outra combinou que o seu advogado
receberia Gualdino dentro de dias para efetuar o pagamento dos dois
anos em atraso, mas frisou que queria que a reparação fosse feita
“com fatura”, talvez para se dar ares de cumpridora fiscal, o que
Gualdino duvidava. Pouco depois, o técnico ligou:
— Olhe,
senhor… não me lembro do seu nome, desculpe; eu consigo fazer por
1300 euros, mas isso é um trabalho em que praticamente já não
ganho nada. Se quiser, posso começar amanhã, lá para as 3 da
tarde, que eu tenho o serviço de manhã.
Gualdino,
entre a espada e a parede, optou pela espada, reafirmando que não
havia tanto dinheiro e que ia tentar arranjar uma solução mais
barata. Vizinhos desciam, perguntavam pela reparação, resmungavam,
saíam e voltavam com garrafões de água, faziam comentários: “Isto
só no nosso prédio!”, “são sempre os mesmos a pagar”, “a
administração devia fazer alguma coisa”, “também vou deixar de
pagar”. Entretanto, chegou o amigo do tosco da cave. Olhou, apurou
o ouvido de encontro à parede, fez medições. Era da mesma opinião
do técnico dos serviços de águas: passar um cano por fora da
parede.
— 1200
euros! Os senhores não arranjam mais barato. Mas têm de me adiantar
pelo menos metade do dinheiro para eu comprar o material. Se
estiverem de acordo, tenho isto pronto antes do meio-dia de amanhã.
Já podem cozinhar o almoço.
Gualdino
não respondeu, pensativo: “1200! Com sorte, talvez para o fim do
mês possa ter esse dinheiro. E até lá? Uma coisa é certa: só me
renderei depois de esgotar todas as possibilidades.”
— Veja
lá! Hoje é quinta; se demora muito a decidir, mete-se o
fim-de-semana e depois só segunda-feira — chantageou o canalizador
dos dias úteis.
Gualdino
deitou-se cedo, mas dormiu inquieto. Sonhou que caminhava por uma
planície árida e pedregosa, tropeçando a cada passo, e angustiado
por não encontrar uma fonte que lhe matasse a sede que o consumia.
Acordou desejando que o novo dia resolvesse a chatice em que estavam
metidos, mas os deuses que gerem as arrelias pareciam estar
divertidos, quais espectadores de um reality
show da moda.
Os
dois canalizadores, que tinham marcado para meio da manhã, não
apareceram. Gualdino foi para a internet procurar mais contactos e
marcou mais visitas.
O
emproado do terceiro direito, numa das passagens pelo átrio,
interpelou Gualdino.
— Ó,
senhor administrador, nós precisamos de água em casa. Mais 100
menos 100, é irrelevante. O senhor desculpe, mas parece que anda a
brincar aos orçamentos. Por favor, não nos faça andar mais dias
sem tomar banho.
— O
senhor Ferreira empresta o dinheiro? É que sem dinheiro eles não
reparam — ironizou Gualdino, provocador.
— Não
há dinheiro porque o senhor administrador não se impôs a cobrar as
quotas, como era seu dever. Não lhe ficava mal adiantar o dinheiro.
— Não
diga isso, senhor Ferreira. Pensa que eu vivo à larga? As dívidas
já vêm da administração anterior, algumas até da sua, quando
alguns condóminos deixaram de pagar, revoltados por o senhor ter
gasto o fundo de reserva com obras desnecessárias. Mas, olhe, até
estou satisfeito que isto tenha acontecido, para ver se as pessoas
percebem que é preciso pagar para as despesas de condomínio, as
indispensáveis, claro.
— Pode
esperar sentado. E se eu tiver algum prejuízo com esta falta de água
vou responsabilizá-lo por isso — ameaçou Ferreira, enquanto se
afastava abanando a cabeça.
Por
volta das 5 da tarde surgiu uma novidade: um canalizador que dizia
ter um método inovador. Era duma empresa com um nome a condizer —
Mão Mágica — e que fazia todo o tipo de reparações domésticas.
Propunha-se partir a parede, encontrar a rotura e aplicar uma manga
vedante no cano roto. Não seria preciso passar um tubo por fora.
Para saber onde partir, dizia ter um detetor de metais. Preço? 600
euros. Já com o IVA incluído.
Os
olhos de Gualdino brilharam. O preço era irresistível. Depois de
saber que o prédio poderia voltar a ter água “lá para as 9”,
assinou alegremente a autorização para o início da reparação.
Logo o “mãozinhas mágicas” começou a trazer material da
carrinha, apoiado por um ajudante. Gualdino cooperou, ligando uma
extensão elétrica em casa da velha do rés-do-chão esquerdo.
Quando pôs o pé fora de casa dela, a rajada: Tatatatata! Atirou-se
para o chão, o terror estampado no rosto colado ao piso, enquanto
estilhaços voavam por todos os lados. A flagelação apanhara-o mais
uma vez na zona de morte. Tentou ser racional. Não se sentia ferido.
Era preciso reagir, mas estava demasiado aterrorizado. A rajada
parou.
— Ó,
senhor, sente-se bem? — perguntava ansioso o ajudante do
canalizador. Este também o olhava surpreendido.
Gualdino
levantou-se, olhos incrédulos, suores frios a banharem-lhe a camisa.
O canalizador tinha começado a escavacar a parede de mármore com um
pesado berbequim. Fora o barulho martelado da ferramenta que fizera
Gualdino reviver o pesadelo de uma emboscada numa picada angolana,
durante o serviço militar. Já fora há tanto tempo, mas de quando
em quando ainda acordava a gritar. Pediu desculpa e recolheu-se a
casa. Por pouco tempo. O canalizador apareceu logo a seguir,
informando:
— Já
abrimos a parede. Estão cheios de sorte: o cano está bom, só tem
aquela rotura. O senhor faça-me um favor: ligue para os serviços
de águas a pedir que venham fazer a ligação, enquanto eu vou
comprar material. Não demoro nada.
Gualdino
desceu ao átrio pejado de pedaços de mármore e tijolo. Dentro do
rasgo de meio metro de largura da parede via-se um troço de cano
metálico de uns seis ou sete centímetros de diâmetro. Um quarto de
hora depois, chegou o técnico dos serviços de águas e postou-se
junto à torneira mestra, de chave na mão, pronto a atuar. Passado
mais outro quarto de hora, começou a impacientar-se:
— Vocês
metem-se com profissionais da treta… Eu não posso ficar aqui à
espera deles. Vou-me embora, que ainda tenho de cortar a água a dois
que não pagaram a conta.
E
foi-se. Gualdino esperou mais meia hora, enquanto ia ouvindo a
ladainha das queixas e dos remoques mais ou menos explícitos dos
vizinhos. Quando o canalizador voltou, rapidamente aplicou duas meias
cânulas forradas a borracha, de uns dez centímetros de comprimento,
mutuamente aparafusadas a envolver o cano roto. Parecia demasiado
simples. “Se é só isto, é caro!” Como que por telepatia
apareceu o técnico e abriu a água. Um silvo aquático fez-se ouvir,
enquanto um fino mas potente jato de água se escapava da face
escondida do cano e encharcava o interior da parede. O técnico
voltou a fechar a água, enquanto resmungava um “profissionais da
treta”.
— Quando
tiverem a reparação pronta, voltem a ligar para os serviços! —
avisou, antes de se ausentar. — Mas, já sabem: cada deslocação
são 50 euros. Vem tudo na próxima fatura.
O
canalizador, vagamente embaraçado, tateava a superfície curva do
cano. Em seguida aplicou um segundo par de meias cânulas na zona
danificada. Não demorou mais de dez minutos. Depois começou a
arrumar a ferramenta, instando o ajudante para que varresse os
detritos e a água que tinham transformado o átrio num charco
pedregoso, o que este foi fazendo com grandes delongas. Na verdade,
tempo não faltava. O técnico acabou por aparecer mais de uma hora
depois de ser chamado. Finalmente, mais de 24 horas depois do início
da tormenta, a água voltou às torneiras do prédio nº 74 da rua
Finisterra, sem mais contratempos. O cano mantinha-se seco após a
abertura total da torneira mestra. Gualdino quase se comoveu com o
fim do calvário a que tinha estado submetido. Nessa noite iria
dormir muito bem e no dia seguinte poderia voltar à confortável
calma do ramerrame quotidiano, com um ou outro passeio pelo jardim,
as divagações da consciência, os programas tontos da televisão, e
sobretudo o seu sudoku.
Um
mês depois, recebeu uma carta da Mão Mágica na qual se pedia o
pagamento de 48,99 euros referente à primeira prestação mensal do
contrato de manutenção da canalização do condomínio. Gualdino
ligou imediatamente para a empresa, ficando a saber que tinha
assinado um contrato de manutenção anual, automaticamente
renovável, cujo prémio não estava incluído nos 600 euros que
tinha pago em cheque ao canalizador.
— Porra!
Quem se mete por atalhos mete-se em trabalhos!
Definitivamente,
os bons e calmos tempos tinham acabado. “Os puzzles da vida
social são bem mais traiçoeiros que os do papel.” Adivinhava já
os múltiplos contactos com a Defesa do Consumidor, as tentativas de
conciliação em algum Julgado de Paz, os meses a passar. Estava
certo de que esse ano lhe ia ficar na lembrança como “o ano da
ruptura”. Paradoxalmente, a perspetiva não lhe era completamente
desagradável. A possibilidade de uma boa briga legal sempre o
inflamara. “Muito ovo põe a pita, mas a zorra é que arrebita.”
Joaquim
Bispo
*
* *
Imagem:
Edvard Munch, Autorretrato em frente de casa, 1926.
(Este
conto obteve o 7º lugar, na categoria “Conto de autor Adulto”,
no Concurso “Cidade do Penedo de Poesia e Conto/2015”, promovido
pela Academia Penedense de Letras, Artes, Cultura e Ciências,
Penedo, Brasil.)
*
* *
2 comentários:
Li, achei muito interessante e podes mandar sempre que escrevas um novo; podes mandar-me uma cópia para este e-mail. Já não te vejo há muito. Tudo bem contigo? Um abraço. Carlos Quinas
Obrigado! Continuarei a enviar-te os links dos contos e não os contos. Serve para eu perceber quantas pessoas entram neles. :)
Sim, já não te vejo há 10–11 anos. A reforma dá-se bem comigo. Ou será o inverso?
Abraço!
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