Terá andado aqueles anos
todos sem sapatos.
Descalço como tantos andavam
naquele tempo.
Ele contava que um dia a mãe
lhe comprou umas botas.
Teria seis anos. Tinha, de
certeza, menos do que nove.
Eram umas botas de cabedal
com brochas ou, se não as tinham pela sola inteira, teriam, na biqueira e no
calcanhar, pequenos reforços metálicos para que a sola durasse. Botas com
atacadores enfiados em ilhós bem pregadas no cabedal. Uma meia dúzia delas de
cada lado e os cordões enfiados com preceito.
Terá sido pela altura da
feira de Novembro. Ou terá sido num mercado por altura de ter feito anos que
era no início de Agosto.
Ficavam-lhe grandes.
Calcando na biqueira,
adivinhava-se o dedo deslocado do rebordo da frente. Que seriam para durar,
assim terá a mãe pensado e deu-lhe uma palmadinha na barriga das pernas a
incitá-lo a andar: que as experimentasse; que fizesse o pé à rijeza do cabedal.
E ele correu em volta. Soltou-se pó do chão da rua que ficava em frente do
poial da casa onde tinham estado sentados, mãe e filho a fruir aquele momento
de calçar as botas.
Ao dia seguinte ele já as
calçou sozinho, mas pediu ajuda porque um dos cordões, o da bota do pé
esquerdo, se tinha desenfiado das ilhós. A mãe, vagarosa e sábia, enfiou com
preceito o cordão sob o seu olhar atento e curioso. Ter-se-á repetido um dia e
outro, que a mãe tinha gosto que ele as usasse, que andasse com os pés
calçados, que criasse o hábito dos sapatos para que, grande, alistado na tropa
para ser soldado, não criasse feridas, borrefas imensas e bolhas. Queria o
filho calçado e, para isso, juntara o que era preciso, moeda em cima de moeda
numa caixa de folha que tinha trazido de casa duma patroa num Natal antigo
cheia de figos secos e miolo de amêndoa. Nunca mais tinha tido uma patroa como
aquela e guardara a caixinha para lhe servir de mealheiro.
Na segunda semana de ter
estreado as botas, ou terá sido um pouquinho mais tarde, desceu a rua. Era uma
rua inclinada e larga e ele gostava de ir pontapeando pedrinhas se sabia que a
mãe não o via. Ela chamou-o: não demores lá por baixo, gritou-lhe, ainda ele
não fizera o gosto de sentir o reforço metálico da biqueira a desenterrar uma
pedra mais teimosa e depois a pontapeá-la com força. Mal percebeu que a mãe se
recolhera, iniciou aquele jogo que era um modo de ir brincando, ele que não
teria sequer sete anos e, a ter mais, nunca seriam mais do que nove, idade em
que a mãe o mandaria à farmácia e, na volta, o remédio aviado se espalharia
pelo chão, um líquido escuro e espesso escorrendo do frasco partido por
escorregar da mão da mãe. Era assim que ele contava de como tinha sido. A mãe morta, ainda nem tinha chegado o mês em que faria nove anos.
Naquele dia, desceu a rua
como era seu costume que, lá em baixo, a ribeira espraiava-se mas, na maré vaza, ficava
um largo e era lá que ele jogava à bola com outros rapazes.
Trazes botas, terá gritado
um dos mais velhos a vê-lo chegar.
Descalça-as, ou não jogas, intimou
um outro, e ele terá receado e, pequenino que era naquele grupo de rapazes,
ter-se-á sentado a descalçar as botas que, uma de cada lado, fizeram os limites
da baliza.
Contava ele que jogou
afogueado, ligeiro, bem colocado ao centro ou saltando quando necessário para
que a bola nunca entrasse, e nessa tarde nem uma só bola passou além do limite
delineado pelas botas novas que tinha descalçado.
Muito gosta este menino de jogar
à bola, dizia a mãe a sonhar-lhe futuros, nem ela sabia que ele jogava quase
sempre a guarda-redes.
E a tarde foi-se descaindo
em luco-fusco e terminaram o jogo, e foram andando rua acima que a ribeira
subira uns bons metros e num instante cobriria o campo em que tinham jogado.
Sentada no poial a mãe preparava
umas couves para o caldo.
Ele contava que a mãe nem
disse: e as botas? que nem terá tido voz para indagar, e que foram os dois
correndo ladeira abaixo num desconforto, ele a sentir, desusado, os bicos das
pedrinhas nos pés descalços.
No lusco-fusco que era já quase
escuro, a ribeira rebrilhava aos últimos raios do dia acentuando o ir e vir daquele
lençol de água que nem tinha um palmo de profundidade. Lá ao fundo, as botas
deslizavam para longe e eles correram e eles ficaram molhados e eles gritaram
vocábulos que até aí desconheciam a dizer cada um de seu diferente desespero,
um desespero que calaram em silêncio de lágrimas e de rezas, quando a água
devolveu, separadas de tantos metros quanto tinha a largura duma baliza, as
botas que nem pareciam as mesmas por estarem ensopadas.
Ele contava que a mãe ficou
zangada, mas que ao outro dia, com as botas já secas, voltou a descer a rua
para jogar à baliza.
Voltou a descer a rua para
jogar mas, desde aquele dia, as botas ficaram apenas botas de ir à escola.
Daquele dia em diante, ia
jogar, sim, mas as botas ficavam em casa.
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