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segunda-feira, 15 de agosto de 2016

descalço

Terá andado aqueles anos todos sem sapatos.
Descalço como tantos andavam naquele tempo.
Ele contava que um dia a mãe lhe comprou umas botas.
Teria seis anos. Tinha, de certeza, menos do que nove.
Eram umas botas de cabedal com brochas ou, se não as tinham pela sola inteira, teriam, na biqueira e no calcanhar, pequenos reforços metálicos para que a sola durasse. Botas com atacadores enfiados em ilhós bem pregadas no cabedal. Uma meia dúzia delas de cada lado e os cordões enfiados com preceito.
Terá sido pela altura da feira de Novembro. Ou terá sido num mercado por altura de ter feito anos que era no início de Agosto.
Ficavam-lhe grandes.
Calcando na biqueira, adivinhava-se o dedo deslocado do rebordo da frente. Que seriam para durar, assim terá a mãe pensado e deu-lhe uma palmadinha na barriga das pernas a incitá-lo a andar: que as experimentasse; que fizesse o pé à rijeza do cabedal. E ele correu em volta. Soltou-se pó do chão da rua que ficava em frente do poial da casa onde tinham estado sentados, mãe e filho a fruir aquele momento de calçar as botas.
Ao dia seguinte ele já as calçou sozinho, mas pediu ajuda porque um dos cordões, o da bota do pé esquerdo, se tinha desenfiado das ilhós. A mãe, vagarosa e sábia, enfiou com preceito o cordão sob o seu olhar atento e curioso. Ter-se-á repetido um dia e outro, que a mãe tinha gosto que ele as usasse, que andasse com os pés calçados, que criasse o hábito dos sapatos para que, grande, alistado na tropa para ser soldado, não criasse feridas, borrefas imensas e bolhas. Queria o filho calçado e, para isso, juntara o que era preciso, moeda em cima de moeda numa caixa de folha que tinha trazido de casa duma patroa num Natal antigo cheia de figos secos e miolo de amêndoa. Nunca mais tinha tido uma patroa como aquela e guardara a caixinha para lhe servir de mealheiro.
Na segunda semana de ter estreado as botas, ou terá sido um pouquinho mais tarde, desceu a rua. Era uma rua inclinada e larga e ele gostava de ir pontapeando pedrinhas se sabia que a mãe não o via. Ela chamou-o: não demores lá por baixo, gritou-lhe, ainda ele não fizera o gosto de sentir o reforço metálico da biqueira a desenterrar uma pedra mais teimosa e depois a pontapeá-la com força. Mal percebeu que a mãe se recolhera, iniciou aquele jogo que era um modo de ir brincando, ele que não teria sequer sete anos e, a ter mais, nunca seriam mais do que nove, idade em que a mãe o mandaria à farmácia e, na volta, o remédio aviado se espalharia pelo chão, um líquido escuro e espesso escorrendo do frasco partido por escorregar da mão da mãe. Era assim que ele contava de como tinha sido. A mãe morta, ainda nem tinha chegado o mês em que faria nove anos.
Naquele dia, desceu a rua como era seu costume que, lá em baixo, a ribeira espraiava-se mas, na maré vaza, ficava um largo e era lá que ele jogava à bola com outros rapazes.
Trazes botas, terá gritado um dos mais velhos a vê-lo chegar.
Descalça-as, ou não jogas, intimou um outro, e ele terá receado e, pequenino que era naquele grupo de rapazes, ter-se-á sentado a descalçar as botas que, uma de cada lado, fizeram os limites da baliza.
Contava ele que jogou afogueado, ligeiro, bem colocado ao centro ou saltando quando necessário para que a bola nunca entrasse, e nessa tarde nem uma só bola passou além do limite delineado pelas botas novas que tinha descalçado.
Muito gosta este menino de jogar à bola, dizia a mãe a sonhar-lhe futuros, nem ela sabia que ele jogava quase sempre a guarda-redes.
E a tarde foi-se descaindo em luco-fusco e terminaram o jogo, e foram andando rua acima que a ribeira subira uns bons metros e num instante cobriria o campo em que tinham jogado.
Sentada no poial a mãe preparava umas couves para o caldo.
Ele contava que a mãe nem disse: e as botas? que nem terá tido voz para indagar, e que foram os dois correndo ladeira abaixo num desconforto, ele a sentir, desusado, os bicos das pedrinhas nos pés descalços.
No lusco-fusco que era já quase escuro, a ribeira rebrilhava aos últimos raios do dia acentuando o ir e vir daquele lençol de água que nem tinha um palmo de profundidade. Lá ao fundo, as botas deslizavam para longe e eles correram e eles ficaram molhados e eles gritaram vocábulos que até aí desconheciam a dizer cada um de seu diferente desespero, um desespero que calaram em silêncio de lágrimas e de rezas, quando a água devolveu, separadas de tantos metros quanto tinha a largura duma baliza, as botas que nem pareciam as mesmas por estarem ensopadas.
Ele contava que a mãe ficou zangada, mas que ao outro dia, com as botas já secas, voltou a descer a rua para jogar à baliza.
Voltou a descer a rua para jogar mas, desde aquele dia, as botas ficaram apenas botas de ir à escola.
Daquele dia em diante, ia jogar, sim, mas as botas ficavam em casa.

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