Quando
o padre Vicente entrou na barbearia, temeu por um momento que não
fosse conseguir cortar o cabelo antes da missa das seis: na cadeira
do “tio” Matias estava o presidente da Junta, e à espera estava
o secretário, mas depressa percebeu que este não vinha para cortar
o cabelo; simplesmente acompanhava o chefe para todo o lado.
— Boa
tarde, meus senhores! — cumprimentou.
— Boa
tarde, senhor padre! — responderam os três em coro.
Sentou-se
num dos bancos forrados a napa que se alinhavam voltados para a
majestosa cadeira onde os homens se vinham libertar de sumptuosas
melenas, quando se tornavam demasiado rebeldes para aceitar o pente.
No rádio acabara de cantar Artur Garcia e anunciava-se Suzy Paula.
— Então,
senhor padre, já está ambientado cá à terra? — perguntou o
presidente.
O
padre Vicente tinha sido colocado em Leirosa do Côa havia pouco mais
de um mês e quase só conhecia o pequeno grupo que ia à missa.
Ainda não tinha atingido os trinta anos, era alto e rosado, e não
vestia batina.
— Sim,
já conheço bastantes paroquianos, alguns até em confissão. Já se
confessaram este ano? — inquiriu, com um prazer pouco católico.
— Lá
havemos de ir, senhor padre! — respondeu o presidente, prazenteiro.
Era um homem na casa dos sessenta, um pouco anafado, de cabelo ralo e
nariz abatatado. — Todos os anos, pela Páscoa, me confesso. Eu e
aqui o meu secretário, não é verdade, Simão?
O
visado acenou que sim, subserviente. Teria quarenta e poucos anos,
usava o cabelo liso com brilhantina e trazia um fato às riscas.
— Mas
isto é uma terra sem pecados — carregou o presidente, enquanto o
barbeiro se esmerava no recorte da orelha direita. — Aqui é tudo
boa gente, sem cobiça, sem luxúria. Olhe, aquela que ali vai, a
dona Clotilde, não deve ter mais de cinquenta anos; ficou viúva há
uns quatro anos e nunca mais se lhe conheceu homem, ou sequer
interesse por eles. Passa a vida na igreja. Às vezes, até gostava
que houvesse mais movimento, para a gente ter de que falar, sem ser
só de caça. A propósito, o senhor padre não caça? — rematou,
com muita malícia na entoação. — Há por aí umas coelhas…
O
secretário e o barbeiro riram-se, mas com pouco à-vontade, devido à
inconveniência do presidente da Junta. O padre também riu, e sem
cinismo.
— Há
muito tempo que a minha alma e o meu corpo pertencem à Igreja. Sou
homem, reparo quando uma mulher é bonita, mas estou comprometido com
algo maior e só aos seus encantos me dedico — acentuou, numa meia
verdade. Fazia parte do saber viver do relacionamento social.
— Ah,
senhor padre, contam-se muitas histórias de padres e saias. E não
são batinas. Ali na aldeia de Trevez correram com o de lá, há uns
cinco anos, porque andava metido com a governanta, o desavergonhado.
Levou uma sova!
— Há
sempre ovelhas ronhosas em todos os rebanhos. Por mim, espero ficar
aqui por muitos anos, com o respeito de todos, que já vi que estou
entre gente honrada.
Sentada
numa das filas da frente da igreja, dona Clotilde observava o Cristo
crucificado de tamanho natural, que estava em fundo, sobranceiro ao
altar-mor. Os seus olhos percorriam os músculos das pernas, magras como as do seu Albano, que Deus tinha. Custava-lhe muito a
viuvez. Nenhum homem se tinha aproximado, a não ser o untuoso do
presidente da Junta, com umas insinuações porcas. Ela própria
também não se mostrava acessível. Tinha muitas saudades, mas do
seu homem. Recordava-o, ao olhar este Cristo: o mesmo corpo ossudo, a
barba, uma certa expressão de abandono. Ficava horas esquecidas a
percorrer-lhe o corpo com o olhar. Em momentos de maior desvario,
imaginava que o abraçava, indefeso, e lhe arrancava o pano que a
separava de algo tão indefinível que só se reconhece quando se
volta a experimentá-lo. Louca! O mais perto que conseguia chegar
desse algo indefinível acontecia quando, antes de adormecer, se
persignava interminavelmente com o crucifixo, em que um Cristo em
tudo igual, só que mais pequeno, abria os braços de impotência
perante tal carência. Elevava-o ao rosto, aos lábios, beijava-o:
“Em nome do Pai”; baixava-o até ao ventre, a rojar sempre um
pouco mais abaixo, a cada descida: “do Filho”; roçava com ele os
peitos, por cima da camisa de dormir: “do Espírito… Santo”.
Pouco
depois, de cabelo cortado e pescoço escanhoado, o presidente
abandonou a barbearia do “tio” Matias, seguido pelo secretário.
O padre Vicente sentou-se, pediu só uma aparadela, e daí a pouco
estava na igreja.
Dona
Irene, a esposa do presidente da Junta, veio pedir-lhe para se
confessar. Era uma paroquiana muito bem arranjada, de uns cinquenta
anos. Como ainda faltava quase meia hora para a missa, o padre
acedeu. Pôs a estola e sentou-se no confessionário. Do outro lado
da grelha, a senhora, em vozinha sussurrante, pediu perdão dos
pecados e começou a estender um rol dos atos que vinha a praticar
com o seu homem e que ela temia que fossem pecados da carne.
Pormenorizava o que ele fazia, como fazia, com que vagares. O padre
Vicente, envolvido pelo perfume floral de dona Irene, ia ouvindo a
confissão num fluxo morno ciciado junto ao seu ouvido, tentando
avaliar se a paroquiana era culpada de luxúria ou tudo se devia ao
cio do marido. Foi a voz suave de dona Irene que se encarregou de o
elucidar: queria confessar tudo, porque se sentia culpada de ter
gostado e de ter colaborado com entusiasmo. “Perdoai-me padre, que
eu pequei”, pedia. O sacerdote observava o rubor do rosto da
pecadora, os lábios cheios, o suave arquejo do peito generoso.
Concluiu pela condenação: vinte pai-nossos.
Dona
Irene sentou-se na sua cadeirinha almofadada da primeira fila e
esperou pela missa, enquanto cumpria a penitência. Sentia-se mais
aliviada. Tinha confessado tudo. Ou quase. Tinha descrito as partes
mais escabrosas, mas dissimulara com quem praticara os atos
confessados. Não tivera coragem de contar que, todas as
quintas-feiras, enquanto o marido ia à reunião com o presidente da
Câmara, na cidade, ela se encontrava com o secretário Simão, num
anexo da Junta. Por outro lado, cedera ao prazer mórbido de se
alongar em pormenores, para ver a reação do jovem padre.
Pressentira a sua perturbação, o que, inexplicavelmente, lhe
agradara.
O
padre Vicente disse a missa um pouco inquieto. Não que duvidasse da
sua vocação, mas aquela vozinha insinuante reavivara-lhe algumas
memórias gratas de adolescente. Quando chegou o momento da comunhão,
dona Irene encabeçou a pequena fila de comungantes. Ajoelhou à
frente do padre, entreabriu a boca, pôs a língua ligeiramente de
fora, estendeu um pouco o rosto para a frente e fechou os olhos. O
padre, sugestionado, pensou reconhecer nesta visão uma das
peripécias lúbricas ouvidas há pouco em confissão, mas mal
hesitou: pegou na hóstia branca e, com calma forçada, depositou-a
na língua húmida e rosada da cativante paroquiana. Logo a língua
se recolheu com a sua preciosa carga, como se recolheu dona Irene à
sua cadeira, de cabeça humildemente baixa, tentando não morder o
que era para manter na boca até se liquefazer.
Acabada
a missa, o padre Vicente refugiou-se no seu pequeno reservado da
sacristia. Depois de, em gestos rápidos, retirar os paramentos,
sentou-se na cadeira da escrivaninha e abriu a sua Bíblia, de onde
retirou um “santinho”. Era uma reprodução de uma “virgem do
leite” do pintor Frei Carlos, que ele procurava em momentos de
maior perturbação, desde os longos tempos de desamparo do
seminário. Reviu o rosto adolescente da imagem, o olhar inocente, a
boca onde parecia aflorar um sorriso compreensivo. Demorou-se a
contemplar o seio da Virgem, que esta apertava, e do qual jorrava um
fino esguicho de leite em direção à boca do menino, da qual
escorria em veios brancos pelo queixo. A estampa, talvez pela
assumida carnalidade, desencadeava sempre um movimento da sua alma,
desta vez potenciado pela visão da boca recetiva de dona Irene e dos
seus dois dedos a introduzirem nela o corpo de Cristo, com a mesma
delicadeza com que agora seguravam o seu corpo e, mentalmente,
repetiam o mesmo gesto. A comunhão de corpo e alma com o divino não
tardou. Em arrebatamento. Em ausência de si. Em transcendência.
Deus atingia-se de muitos modos.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Peter Paul Rubens, Crucificação, 1610–11.
(Este
conto integra a coletânea resultante do concurso literário do site
“Ora, vejamos…”, de 2009, com o título “Algo indefinível”.)
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2 comentários:
vinte pai-nossos ... eheheheh
que conto lúbrico
eu tê-lo-ia terminado nos vinte pai-nossos
o resto parece-me um exagero e desfeia o conto
iv - sugestões para aperfeiçoamento: nadinha — foi o final do teu comentário a este conto, lá no grupo comum de escrita em que foi apresentado, há quase 8 anos, Fátima. Estás mais exigente? Parece-me natural.
Se os inconfessáveis femininos não desfeiam o conto, acho que os masculinos também não. E era dos inconfessáveis masculinos que eu queria falar. :)
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